sexta-feira, 18 de julho de 2008

Projeto -" Bichos da Seda Deslocados?"

Agradecimentos
Aos entrevistados da pesquisa, que generosamente nos receberam e muito contribuíram com suas histórias e reflexões: Cacá Callegari, César Gouvêa, Clara Gouvêa, Geórgia Lengos, Helena Katz, Iracity Cardoso, Juliana Moraes, Key Sawao, Letícia Sekito, Patrícia Werneck, Paula Salles e Sandro Borelli.
Aos participantes da mesa-redonda do primeiro evento, na Casa das Rosas, por sua contribuição generosa e voluntária: Antônio Luís Zerbeto Rocha, Cristian Duarte, Dora Leão e Sônia Sobral.
A todos os que estiveram presentes, trocaram idéias, conversaram, debateram, deram opiniões, reclamaram nos eventos realizados, nas mesas de bar, nos corredores, nos saguões dos teatros e contribuíram para as reflexões aqui esboçadas.
À Casa das Rosas – em especial, ao Doni e à equipe de produção - que nos acolheu para a realização da mesa-redonda em 09 de abril de 2008.
À Galeria Olido – em especial, à Sula - que nos acolheu para a realização do evento de encerramento, em 08 de julho de 2008.
Aos funcionários da Secretaria de Estado da Cultura, gentis e atenciosos: em especial, à Kenia e à Tatiana, que prontamente ajudaram-nos e socorreram-nos durante o processo.
À Secretaria de Estado da Cultura, pelo apoio do PAC4.

Nota introdutória: para desobstruir rotas de fuga
A pergunta-guia dessa pesquisa, bem como as reflexões e hipóteses que nos guiaram/guiam, perseguiram/perseguem são fundadas em nossas práticas no mundo da arte, principalmente na dança (em seus múltiplos diálogos).
Assim como nossos entrevistados, temos vivido “vidas duplas, triplas, quádruplas...” para nos sustentarmos; temos passado mais tempo escrevendo editais do que criando; temos tido pouco tempo e energia pra mergulhos profundos criativos; engajamo-nos em espetáculos, por meses ou anos, que só apresentamos um par de vezes; poucas vezes temos a sorte de sermos “sorteadas” em um edital; muitas vezes não vimos uma crítica de espetáculos nossos ou de amigos próximos em jornais; algumas vezes, temos a persistência necessária, outras pensamos em jogar tudo pro alto; dobramo-nos a cachês inaceitáveis; aceitamos trabalhos inaceitáveis; queremos e não queremos uma vida com uma rotina; criamos grupos fictícios, com validade de um projeto, para concorrer a editais; ao invés de dizer não, adaptamos projetos criativos a demandas de contratantes...
Ou seja, não falamos de práticas ou realidades externas às nossas. Muito pelo contrário: o leitor pode sim ouvir o eco de nossas vozes, dúvidas e pensamentos nas falas de nossos colegas; como se, em parte, esse “personagem-artista-entrevistado” fosse Adriana-Laura-Mariana, em suas muitas facetas. Não estamos atrás, mas junto dessas entrevistas.
Incluam-nos dentro dessa: a cada prática ou fato que colocamos luz, pode-se ver também uma auto-reflexão que persegue caminhos de respostas: será que podemos fazer diferente? Afinal, para nós, a proposta dessa pesquisa veio de uma sensação de falta de oxigênio e dificuldade de respirarmos artisticamente. Unimo-nos nas fronteiras de um deserto: nossa junção poderia ser uma alternativa. Por meses, nos encontrávamos por horas a fio para debater. O incômodo frente à forma de vida que levamos nos unia. A possibilidade de concorrer ao PAC levou-nos à idéia de ampliarmos as reflexões para um projeto de pesquisa: sim, essa pesquisa também surgiu “para se adequar a um edital” (!), com o intuito que algum financiamento viesse e permitisse-nos permanecer dedicadas àquelas discussões de maneiras para desobstrução das rotas de fuga. Esperamos que seja um primeiro passo.
Adriana, Laura e Mariana – Junho/ 2008.
Sumário
Introdução 5
1.1 Artista: bicho da seda deslocado? 5
1.2 Contexto: “forjando” condições de existência 6
1.3 Nós, artistas-híbridas 7
1.4 Objetivo 8
1.5 Procedimentos de Pesquisa 9
1.5.1 Sobre a identidade dos entrevistados 10
1.6 Resumo do percurso 11
2 Arte: trabalho e profissão. 13
2.1 Flexibilização e precarização do trabalho 13
2.2 Sociedade salarial? 15
2.2.1 Viver por “empreitada”: laboratórios de flexibilidade 16
2.2.2 “Vida dupla, tripla, quádrupla....”: 19
2.2.3 Sobrecarga: dá pra dizer “não”? 21
2.3 Instabilidade: como manter a criação? 22
2.4 Fetichismo da mercadoria: quando dizer “não”? 24
2.5 Dá pra viver de dança em São Paulo? 27
2.5.1 Paitrocínio: só os ricos fazem arte? 27
2.5.2 Quem fica? 28
2.5.3 “eu ia me circulando”.... 29
2.6 Artista trabalhador: 30
2.6.1 Rotina 30
2.6.2 Salário, carteira assinada... 32
2.7 Conseqüências da instabilidade: corrosão do caráter? 33
2.7.1 Tempo: não há longo prazo 33
2.7.2 Atrás da “cortina libertária” da flexibilização 34
2.7.3 Ética do trabalho 36
3 Política cultural, programas e mercado 39
3.1 Relevância do Estado para o financiamento da cultura 39
3.2 “Empurrãozinho”: política cultural? 42
3.3 A esfera política: lamentar não, brigar sim. 42
3.3.1 O Mobilização Dança e o Fomento à Dança da cidade de São Paulo 44
3.3.2 A São Paulo Companhia de Dança 49
3.4 Avaliando-se editais 53
3.4.1 Quem escolhe? 54
3.4.2 Prós 55
3.4.3 Contras 58
3.5 Faltam espaços de circulação 62
4 Da conjuntura: grupos com prazo de validade, arte solitária ... 67
4.1 Ser novo: como entrar e ser aceito? 68
4.1.1 O papel da faculdade 70
4.2 Vôos solos x vôos em grupo: circunstância ou princípio? 72
4.2.1 Grupo com prazo de validade 74
4.2.2 Como ser só? 76
4.3 Guetos ou classe: vamos lá, gente, vamos sair dos estúdios... 77
4.3.1 O mistério da classe teatral: arte coletiva? 79
5 Sobre pesquisa: das relações entre arte e ciência 80
5.1 Afinal, o que é pesquisa em dança? 80
5.2 Compreensão do que é pesquisa alterará o mercado 84
5.2.1 Necessidade de financiamento 85
5.2.2 Necessidade de um Circuito exibidor próprio 86
5.2.3 Necessidade de referências 87
5.3 Arte e ciência: como se relacionam? 88
5.3.1 Pinceladas dos “usos sociais da ciência” de Bourdieu 88
5.4 A dança paulista como “campo” 91
6 “Teatro é negócio”: o Jogando no Quintal como estudo de caso. 93
7 (In)conclusões: deslocado, descompassante ou descompassado? 97
8 Referências Bibliográficas 99
9 Anexos 101
Anexo 1 - Matriz: análise de editais de fomento à dança
Anexo 2 - Lista de premiados e vencedores de editais
Anexo 3 - Eventos


Introdução
1.1 Artista: bicho da seda deslocado?
Em 1971, Mário Pedrosa faz as seguintes reflexões sobre a arte no Brasil no pós-guerra:
[...] ao lado de produções manipuladas e manipuláveis pelo mercado da arte, as mais desabridas e as mais niilistas experiências atuais, por aqui e pelo mundo, eles [os artistas] se entregaram a uma operação inédita [...] o exercício experimental da liberdade (PEDROSA apud MADEIRA, [s.d.], [s.p.]).

Segundo Angélica Madeira, ele se referia à experiência do Neoconcretismo, de Lygia Clark, Helio Oticica, Lygia Pape, Artur Barrio, entre muitos outros. Alguns anos mais tarde, sua visão é mais sombria: a capacidade de absorção do ultra capitalismo era muito maior do que se poderia prever anteriormente. Ele aponta, então, uma solução: deixar de fazer arte e fazer política. O artista tornara-se uma figura anacrônica na sociedade comodificada, ultra capitalista, pela natureza artesanal de seu trabalho.
Mário Pedrosa, em suas análises e críticas, tinha as artes visuais em primeiro plano e um olhar fundamentado nas idéias de Marx e Trotski. Independentemente desse pano de fundo, suas reflexões acerca do lugar do artista no mundo super-capitalista fazem-se pertinentes. Afinal, perguntava-se ele o que seria a arte nas próximas décadas, e se ela manteria aquela diferença que lhe permitiria separar-se do status quo que ele havia identificado no pós-guerra, aquela capacidade que os artistas de seu tempo ainda guardavam, “esses bichos da seda deslocados que produzem o que não se lhes pede”.
Viver de arte; sobreviver de arte; ganhar a vida como artista. Se recorrermos à matriz marxista, isso querer dizer (às vezes é) vender força de trabalho no mercado e transformar – ou ter sua arte transformada – em mercadoria. Descobrir-se artista é “sempre meio um susto”: além do clichê (e do estigma) do artista livre e rebelde (Ranciére, 2007), há a insegurança em relação à sobrevivência. E aqui, diante de tanta precariedade, aumenta o espaço para a “venda da força de trabalho” pura e simples, a realização de trabalho alienado ou com a vibratibilidade do corpo vampirizada.


1.2 Contexto: “forjando” condições de existência
A possibilidade de se realizar um trabalho em dança (e não só em dança) depende de fatores conjunturais, que podem favorecê-lo ou não. Um bom exemplo pode ser a conjuntura americana dos anos 1960/1970. É um período de muita experimentação e produção de novas possibilidades nas artes em geral. Havia um ambiente sócio-político que favorecia: anos de rebeldia, engajamento anti-puritanista e insurgência contra acontecimentos sócio-políticos da época, como a Guerra do Vietnã. Ao mesmo tempo, segundo a antropóloga Cynthia Novack (1990), a expansão econômica durante os anos 1960, nos EUA, criara condições para que se desenvolvessem possibilidades organizacionais no cenário da dança, como por exemplo, a Judson Dance Theater. Os jovens dançarinos podiam viver de maneira barata em cidades como São Francisco e Nova York, sem a necessidade de “viver de dança”, com dinheiro proveniente de trabalhos em meio-período (CAMARGO, 2008).
Essa conjuntura americana em nada se compara à brasileira - ou mais especificamente à paulista – dos anos 1990/2000. Em 2001, o Rumos Itaú Cultural Dança realizou um “mapeamento contextual” dos “fatores conjunturais que interferem no complexo setor da dança nas diferentes regiões brasileiras”. Um dos capítulos, de autoria de Leda Pereira, é sobre a cidade de São Paulo, que usamos como inspiração, base e contraponto para diálogo para a presente pesquisa.
Logo de início, ela já aponta uma realidade de São Paulo: a cidade cosmopolita, inchado pólo cultural, que oferece ao bailarino um diversificado mercado de trabalho, além das tradicionais atuações de professor e intérprete: migrações que se configuram como estratégia de sobrevivência, bem como ampliação de experiência. Como nas outras atividades, muitas vezes, a preeminência pela sobrevivência minando o fôlego artístico. Qual a opinião dos artistas: sobrevivência ou alimento à pesquisa? Ambos? Um pouco de cada? São também apontados por Pereira a predominância de bailarinos com idade entre 30 e 45 anos, bem como a escassez de companhias: em 2001, eram apenas 18 companhias. A autora também aponta o desamparo dos recursos institucionais e a falta de articulação da classe como fatores que mereceriam destaque
Intriga-nos: será que os jovens têm condição de fazer trabalhos solos consistentes, com exceção dos “pai-trocinados?” Será que os formatos dos editais vigentes não contribui para a i. exclusão dos jovens; ii. desarticulação da classe, e iii. olhar o “outro” como concorrente?

1.3 Nós, artistas-híbridas
Nas conversas cotidianas, transparece um sentimento da classe artística, especificamente dos artistas da dança, de desarticulação e de falta de assistência. Percebemos que, em nossas vidas, as condições para nos dedicarmos ao treinamento, à pesquisa e a criação artística interferem diretamente nas possibilidades de dar vazão a trabalhos inovadores, de cunho investigativo, com consistência e excelência artística. Ao mesmo tempo, observamos a inabilidade de grande parte da “classe” em lidar com o "mundo real", articular-se politicamente, entender e saber transitar em meio à legislação, à realidade de patrocínio, editais e incentivo cultural.
Somos “artistas híbridas”, com formação (e, provavelmente, visão de mundo) que vem de outras áreas do conhecimento: dançarina-mestre-em-psicologial-economista; bailarina-socióloga; atriz-bailarina-psicóloga. De nossa experiência prática cremos que, hoje, compreender a TRÍADE "artístico / burocrático / administrativo-financeiro" é essencial para que se possam criar condições para trabalhos artísticos consistentes, de pesquisa e investigação, sem finalidade imediatamente mercantil ou mercadológica. Observamos que o tipo de relação que se estabelece entre o trabalho artístico, sua viabilização e inserção no mercado da arte estão implicadas na própria forma em que a arte se manifesta.
A necessidade de reflexão acerca do contexto em que a dança se insere vem justamente da observação desta implicação na forma artística. E compreender como se dá a relação entre esse contexto e a produção artística é fundamental para nos aproximarmos do que artista da dança produz hoje na cidade de São Paulo. Logo, quando nos referimos a “uma produção em dança com excelência artística, com trabalhos que envolvem pesquisa e investigação”, faz-se necessário uma imersão no seu contexto de produção, a fim de problematizarmos a TRÌADE: "artístico / burocrático / administrativo-financeiro".
Um conflito entre uma crença juvenil, moderna, da arte como expressão do eu profundo do artista, como espaço de extravasamento de uma individualidade sempre primeira e única, sem herança ou herdeiros, e a consciência da arte hoje em dia como espaço pré-determinado, devidamente institucionalizado, num sistema que não comporta apenas aquilo que se entende como mercado de arte (galerias, museus, etc.), mas, também, a própria história da arte. O que significa este conflito? Que, apesar do desejo, o gesto criador do artista na contemporaneidade (por mais desestruturador ou antiartístico que se pretenda) encontra-se cercado num sistema onde toda e qualquer atitude artística ou pretensamente antiartística parece já ter sido assimilada, catalogada. (CHIARELLI, T., 2002).

1.4 Objetivo
Pretendemos, por um lado, trazer à tona o discurso dos artistas da dança de São Paulo hoje. Cremos que a sistematização desse “eco de uma voz geral” pode servir como material para que o campo da dança se conheça um pouco mais, bem como para “agentes novos no campo” – tais como legisladores, membros dos poderes executivos, formuladores de políticas de fomento públicas ou privadas - possam compreender um pouco mais como vivem, pensam e sentem os artistas da dança paulista em 2008. Acreditamos que esse panorama possa auxiliar-nos a sair do lugar comum, dos estereótipos e permitir formulação de políticas com mais consistência, baseadas na realidade, práticas e cotidiano de uma classe.
Ao mesmo tempo, pretendemos desmontar “pensamentos feitos” relativos à imobilidade do cenário para averiguar possibilidades de criação de “espaços alternativos, descompassantes” como nos fala Tadeu Chiarelli no trecho a seguir.
“O artista contemporâneo (e falo aqui do artista contemporâneo, e não daquele que ficou inerte no mito da originalidade e/ou da individualidade incontaminada, ou daqueles que simplesmente – e pelas mais variadas razões– não se aperceberam das modificações ocorridas no campo e no sistema da arte nos últimos duzentos anos), tendo percebido a partir dessa conscientização de que cada atitude sua, em vez de exaurir o sistema da arte, sempre corre o risco de engordá-lo, viu-se entre duas opções: caía fora e ia tratar de outros assuntos (caso de Duchamp e Lygia Clark, por exemplo), ou então passava a operar nesse sistema fechado, porém não mais com a ingenuidade de seu antecessor moderno que acreditava poder com sua individualidade original modificar o mundo, mas, sim, como um produtor consciente de seu limite de atuação e consciente de que qualquer exercício de sua individualidade teria que ser praticado sempre no sentido de criar um espaço alternativo, descompassante, dentro desse sistema sempre tendente a reequilibrar-se, a recompor-se após qualquer investida”. (CHIARELLI, T., 2002).

Nesta reflexão sobre a pesquisa e investigação consistentes em dança, cabe-nos perguntar: pode ainda hoje o artista produzir aquilo que não se lhes pede? Que espaço existe para isso e como os artistas se relacionam com esse espaço? Mapear as possibilidades que o artista da dança encontra para pesquisa e como ele se relaciona e se articula com a TRÍADE é fundamental para que estes BICHOS DA SEDA DESLOCADOS possam existir.
Deste modo, o que nos interessa, através da presente pesquisa, é trazer à tona dados do cenário contemporâneo da dança paulista de modo a melhor compreendermos a realidade do artista da dança em São Paulo e sua relação com o processo de pesquisa em dança; salientar fatores que favorecem e/ou desfavorecem o processo de pesquisa e como os artistas se relacionam com isso.
Intriga-nos: como sustentar um processo de pesquisa em dança em São Paulo, hoje? Que espaço existe para o trabalho e desenvolvimento de pesquisa de linguagem em dança, na São Paulo?

1.5 Procedimentos de Pesquisa
A pesquisa foi desenvolvida por meio de duas estratégias principais: (1) mapeamento das práticas, fundos e recursos de fomento e patrocínio à dança na cidade de São Paulo e (2) doze entrevistas semi-estruturadas.
Na primeira etapa da pesquisa, o terreno foi preparado. Realizamos dois levantamentos de informações: (i) dos recursos de financiamento à dança, tais como editais municipais, estaduais e federais, editais privados, patrocinadores, etc. (anexo 1) e (ii) dos artistas / grupos da cidade de São Paulo, que fazem (ou pretenderiam fazer) pesquisa em dança, inscritos e contemplados pelos Editais de Fomento, PAC e Funarte nos últimos 3 anos (anexo 2) .
Na segunda etapa da pesquisa, foram realizadas doze entrevistas semi-estruturadas. A fim de construirmos um retrato da dança no cotidiano dos artistas paulistanos, entrevistamos nove artistas da dança, escolhidos a partir do levantamento dos artistas e grupos que se inscreveram em editais de pesquisa. Foram levados em conta os seguintes aspectos para a escolha dos entrevistados:
• englobasse as danças contemporâneas; linguagens distintas, públicos distintos
• tempo de carreira/ idade: procuramos mesclar artistas jovens e artistas com mais tempo de carreira;
• membros de companhias X fundadores de companhias;
• criadores solo x criadores em grupo;

Com o intuito de complexificar o cenário e ter outros pontos de vista incluídos, entrevistamos um teórico da dança e professor universitário e uma pessoa que exerce cargos públicos ligados à dança .Paralelamente, incluímos um artista do teatro/circo, inserido em outro contexto, para dialogarmos.
Como produto, mas também como fonte de alimentação, dois eventos públicos foram realizados. Uma mesa-redonda na abertura do projeto, para trazer novos insumos e subsídios às reflexões, bem como agregar outras opiniões, prismas e visões às nossas para auxiliar-nos na construção desse cenário inicial (contexto) em que se discutirá a relevância da TRÍADE, com a participação de um artista, um produtor de dança, um representante do setor público (responsável pela formulação/aplicação de políticas públicas em dança) e um representante do setor privado (patrocinadores da dança). Para finalizar o projeto, compartilhar reflexões e conclusões, um evento de fechamento, exposição de resultados e inauguração do Blog.
Além das estratégias supra citadas, devem ser citadas a vivência no campo das três pesquisadoras, que incluem bate-papos, listas de discussão, conversas de mesa de bar, entre outras. Um reflexão absolutamente guiada e fincada na prática, no cotidiano, a partir da vida das pesquisadoras-artistas, que se perguntam “como viver de arte?”.
A pesquisa concluiu-se com um Blog que tem por finalidade ser um espaço/veículo para reflexão e questionamento, além de ser um instrumento/serviço de consulta das possibilidades de recurso financeiro e de fomento para a classe.

1.5.1 Sobre a identidade dos entrevistados
Até o final debatemos qual seria a melhor maneira de preservar nossos entrevistados e, ao mesmo tempo, fazer jus a seus pensamentos e opiniões. Fazer as entrevistas e editá-las para a confecção do relatório colocou-nos em uma situação “privilegiada”. Saber-nos nessa “situação privilegiada” levou-nos a uma reflexão permanente, no sentido de usar, da melhor maneira, o material coletado, mas sem “ultrapassar os limites” éticos e a relação de confiança entre pesquisador e pesquisado.
Decidimos omitir os autores dos trechos selecionados: valem como eco das vozes de uma classe – muitas vezes contraditórios – mas não por sua pessoalidade. Ao mesmo tempo, algumas sessões e reflexões só têm sentido se colocadas pelo entrevistado: é o caso da história do edital do Fomento à Dança e da criação da São Paulo Cia. de Dança, contados por Diretora Artística da Companhia, ex-assessora da dança do município de São Paulo, Iracity Cardoso, e das reflexões sobre pesquisa em dança da professora e pesquisadora Helena Katz.

1.6 Resumo do percurso
Iniciamos o capítulo 2 recorrendo ao auxílio de reflexões de importantes autores da sociologia do trabalho (Robert Castels e Richard Sennet), bem como diálogo com pesquisas feitas anteriormente sobre o mercado de trabalho artístico brasileiro; abordamos as questões apresentadas no início da introdução: arte como profissão artística e, consequentemente, o mercado de trabalho artístico. Insegurança, precarização, instabilidade, vidas duplas, grupos com data de validade. Marginais? Sim e não: poucos direitos, mas sofrendo as mesmas agouras dos trabalhadores das “áreas tradicionais”.
O capítulo 3 é dedicado à discussão da política cultural brasileira: o Estado é o principal financiador da cultura no país; entretanto, prescinde-se de uma política cultural ampla, que leve em conta pormenores e particularidades de cada uma das áreas beneficiadas. Não há como falar na relação que se estabelece entre o trabalho artístico, sua viabilização e inserção no mercado da arte sem analisarmos a estrutura das políticas de fomento à cultura em seus vários braços (e distorções), principalmente as leis de incentivo público-privados e os editais - o Estado como principal financiador, mas não principal “decisor”. Apesar de principal instrumento de política pública, os editais são perenes, imprevisíveis: não há como sustentar trabalho contínuo contando-se com editais. Apesar de intermitentes, são uma conquista recente, com aspectos positivos e negativos, fruto de mobilização da classe. Para terminar, um aspecto fundamental para pensar-se a inserção: a falta de espaços para a circulação.
No capítulo 4, discutimos alguns aspectos relacionados às “conversas anteriores” que, cremos, deveríamos, enquanto classe, realizar a fim de reformular (ou formular) políticas de fomento (público ou privadas) para a área. Partimos do mapeamento contextual dos “fatores conjunturais que interferem no complexo setor da dança nas diferentes regiões brasileiras” realizado em 2001 pelo Rumos Itaú Cultural Dança, organizado pela professora Fabiana Britto (2001). São questões abordadas aqui: os obstáculos à entrada dos novos artistas (na maior parte das vezes, jovens) e “as portas de entrada”, com uma atenção especial ao papel das faculdades de dança, que têm aumentado consideravelmente na última década. Já a segunda parte do capítulo (4.2) é dedicada às causa da “escassez de companhias”: no teatro é clara a idéia de “arte coletiva”. Será isso válido na dança também? Uma nova modalidade estaria surgindo: grupos com prazo de validade, para editais: o quê é grupo? Para terminar, nos testemunhos e opiniões dos artistas, as vantagens e mazelas de se estar só ou em grupo (4.2.2).
Afinal, o que é pesquisa e o que é pesquisa em dança? O que era o ponto de partida torna-se um dos principais componentes do ponto de chegada. Ao formularmos a pergunta-guia da pesquisa – como sustentar um processo de pesquisa de linguagem em dança em São Paulo hoje? – não percebíamos a quantidade de nós que a própria pergunta já carregava em sua estrutura. As mais diversas opiniões: todo mundo faz pesquisa; a criação artística tem que ter pesquisa; pesquiso o tempo todo, no meu dia-a-dia; em cena, pesquiso.
No capítulo 5, reunimos algumas das “definições” dadas pelos artistas para o termo “pesquisa em dança”: talvez o que os artistas queiram quando pedem “tempo e oportunidade” para pesquisar sejam processos mais longos, sem compromisso de produtos finais freqüentes; ou a possibilidade de “rotina de trabalho” que tratamos no capítulo 2. A pesquisadora da dança e professora universitária Helena Katz atribui a falta de consenso e clareza em relação ao significado do termo a uma falta de “conversas de base” pela classe para formulação de entendimentos coletivos. Consequentemente, hoje, pela multiplicidade de usos, pesquisa em dança teria se tornado “um termo vazio”. A redefinição e consenso acerca do termo e do papel da pesquisa para a dança trariam modificações estruturais à organização do setor e da classe, assunto que abordamos no item 5.2. Finalizamos o capítulo trazendo novos elementos para a discussão: a noção de campo forjada por Bourdieu e sua discussão dos usos sociais da ciência: uma reflexão crítica a cerca das vantagens e desvantagens da aproximação entre arte e universidade.
Para finalizar, “tudo dito, nada concluído”: A boa-notícia é que a maior parte dos entrevistados é otimista. Já a má-notícia é que, pelo cenário esboçado, o buraco é bem embaixo: mesmo “à margem”, temos sofrido as piores auguras do capitalismo das últimas décadas – contratos de trabalho instáveis, laboratório de flexibilidade, sem longo prazo e compromissos descontínuos. Quais as brechas? Não terminamos com nenhuma fórmula mirabolante - oxalá tivéssemos...Capítulo 6, (in)conclusões.
2 Arte: trabalho e profissão.
Nesse capítulo, iniciamos a jornada de reflexão acerca do contexto em que a dança se insere. A profissão artística sempre foi vista como “marginal” e, consequentemente, poucas vezes as pesquisas na área do trabalho – por exemplo, Sociologia do Trabalho, Psicologia Social do Trabalho, Psicologia Ocupacional, Medicina Laboral entre outras – focaram a área artística. Nesse capítulo, encaramos a dança (ou a arte) como profissão. Usamos como referência, fonte de inspiração e diálogo alguns autores clássicos da Sociologia do Trabalho – como Robert Castel e Richard Sennett – bem como pesquisadores brasileiros que, nos últimos anos, estão abrindo o campo de pesquisa na área do “mercado de trabalho artístico”.
O capítulo está dividido em sete partes. Na primeira parte (3.1), a visão de Robert Castel sobre a precarização do trabalho na sociedade atual. Em seguida (3.2), em diálogo com pesquisas brasileiras, um diálogo entre o cenário construído por Castel e a situação do mercado artístico brasileiro: instabilidade, sobrecarga, vidas duplas. Na terceira parte (3.3), a busca por estratégias de sobrevivência diante de um cenário tão instável. Seguindo o caminho das “alternativas e resistências”, será que a arte resiste à lógica de mercado e à fetichização da mercadoria? Essa é a pergunta central do item 3.4. Diante do quadro construído anteriormente, de muita insegurança e instabilidade, quem consegue viver de dança em São Paulo? (item 3.5). Há, sim, um desejo por rotina e segurança, como apresentaremos no item 3.6.
Para terminar (3.7), na trilha das considerações de Sennett (1997) a respeito das conseqüências da flexibilização do trabalho no mercado atual, considerações a respeito da ética e da forma de se conviver como classe. (Classe; há uma visão de “classe”?).

2.1 Flexibilização e precarização do trabalho
Em uma conferência em 1996, Robert Castel colocara “o questionamento da função integradora do trabalho na sociedade” como a questão social da atualidade (Castel, 2004, p.239). Viveríamos uma degradação ou desagregação da “sociedade salarial” - a sociedade do século XIX, em que trabalho torna-se emprego - emprego protegido, “emprego como status”. No início do século XX, a condição salariada era ingrata e achava-se que era “um movimento transitório” e que os assalariados poderiam tornar-se proprietários. No final do século, a partir da década de 70, a situação é oposta: percebe-se o salariado como um “estado permanente”, sendo preferível aceitá-lo a “ver se desenvolver no coração da sociedade industrial massas atingidas pelo pauperismo generalizado”, como ocorrera no início do século (Castel, 2004, p.243).
Assim, a partir da década de 70 fala-se em ”sociedade salarial”, em que “a maioria dos sujeitos sociais têm sua inserção social relacionada ao lugar que ocupam no salariado”. Para Castel, é em torno desta situação que “a sociedade moderna se organizou” (Castel, 2004, p.244).
O final do século XX aponta uma nova realidade: as exigência crescentes da concorrência e competitividade pressionam a produção para cortes de custos. O trabalho foi um dos principais alvos dessa redução, através de minimização de preço e maximização de eficiência. “E a flexibilização a palavra-chave que traduz essa tendência”: nessa nova realidade, “instabilidade do emprego vai substituir a estabilidade como regime dominante da organização do trabalho” (Castel, 2004, p.249). Ou seja, precarização e uma constante condição de vulnerabilidade e desmembramento das regulações coletivas de proteção e direitos características das fases anteriores.
Como conseqüências desse processo, Castel (2004) aponta três aspectos: a (i) desestabilização dos estáveis; (ii) a instalação na precariedade (ou instalação de cultura do aleatório ou do dia-a-dia) e (iii) descoberta dos sobrantes – “pessoas que não têm lugar na sociedade, que não são integradas e talvez não sejam integráveis”. Segue Castel na descrição dessa nova classe: “são indivíduos que estão completamente atomizados, rejeitados de circuitos que lhes poderiam atribuir uma utilidade social” (Castel, 2004, p.259).
Castel toma como base a Europa Ocidental – principalmente França, Alemanha e Inglaterra para sua análise. A transposição para a realidade brasileira, como já sinalizara o autor, precisa de adaptações: diferentemente dessas sociedade, nunca conhecemos o pleno emprego e a instalação da precariedade é uma realidade desde sempre (não um fenômeno do final do século XX). Entretanto, a fundação da identidade social no trabalho e no emprego são uma realidade brasileira e as transformações recentes no mercado mundial operam transformações profundas – de realidades e perspectivas – também no mercado brasileiro.


2.2 Sociedade salarial?
Recentemente, Liliana Segnini (2007) realizou uma pesquisa acerca das relações sociais no mercado e nas relações de trabalho em música e em dança no Brasil e na França. Questionava-se pela especificidade central do trabalho artístico que o distinguiria de outras formas de trabalho. Assim como nós na proposta dessa pesquisa, Segnini observara que “o trabalho do artista é frequentemente analisado privilegiando sua performance ou obra”; já as “relações de trabalho e profissionais, implícitas nestes processos, são pouco analisadas e contextualizadas” (Segnini, 2007, p.2).
Segnini (2007, p.2) tem o intuito de “levantar o véu da produção artística” e problematizar a “tensão entre arte, trabalho e profissão”. Afinal, o trabalho artístico, para além de sua dimensão imaterial, insere-se também na lógica de mercado. E a atividade artística, como toda atividade reconhecida, segundo Becker nas palavras de Segnini, sujeita a “regras, constrangimentos, inserem-se numa divisão do trabalho, em organizações, profissões, relações de emprego, carreiras profissionais” (Becker apud Segnini, 2007, p.2). Perguntava-se a pesquisadora acerca do significado de ser reconhecido como artista na sociedade atual, salarial, num contexto de “mundialização e privatização da cultura” (Segnini, 2007, p.4). O artista é visto como um trabalhador e a “atividade artística inscrita na esfera do trabalho e dos constrangimentos singulares que a constituem” (Segnini, 2007, p.31).
Os entrevistados de Segnini - músicos membros de orquestras permanentes e bailarinos pertencentes (ou desejavelmente pertencentes) a corpos de Balés estáveis reafirmam, segundo a pesquisadora, em suas falas “o vínculo de trabalho salarial como uma das expressões da sociedade, no presente” (Segnini, 2007, p.9).
Diferentemente do resultado obtido por Segnini, para os artistas entrevistados da presente pesquisa, a realidade salarial não é conhecida no trabalho artístico: vive-se por empreitada, em situação de extrema precariedade. Precariedade nas mais diversas formas, as quais aprofundamos a seguir:
i. Viver por “empreitada”
ii. Sobrecarga: acúmulo de trabalho, muitos processos criativos concomitantes, beirando o esgotamento:
iii. “Vida dupla, tripla, quádrupla....”

E, mesmo correndo o risco de uma extrapolação muito além do que temos insumos para fazer, não se pode falar tampouco em “precarização” como definida por Castel. Só se precariza algo que teve melhores condições um dia: será que, no Brasil, em algum tempo a situação do artista deixou de ser precária e marginal?
Talvez o baixíssimo número de profissionais dos espetáculos e artes – apenas 215 mil dentre 83 milhões de ocupados ou 0,26% - apontados por Segnini (2007) relacione-se com essa extrema precarização histórica: os editais e regulamentações que exigem do artista regulamentação da profissão são muito recentes. Antes disso, qual era a vantagem ou o interesse em registrar-se (e pagar mais taxas e impostos)? (Marginal por marginal, marginal por inteiro.....). Quiçá a chegada dos editais públicos e fortalecimento do financiamento público-privado (lei Rouanet) explique o crescimento desse grupo – profissionais dos espetáculos e artes - nos últimos anos, muito acima do da população ocupada entre 1992 e 2001: 67% contra 16% .

2.2.1 Viver por “empreitada”: laboratórios de flexibilidade
Segundo Segnini (2007), a carreira artística é historicamente reconhecida como “instável”. Por sua vez, tal condição tem se intensificado atualmente devido à precarização do mercado de trabalho em geral. A pesquisadora cita as pesquisa de Menger sobre o trabalho artístico na França, para quem os trabalhos artísticos são “verdadeiros laboratórios de flexibilidade” em sua face mais perversa: quando se trata de mercado de trabalho, flexibilidade e precarização costumam andar de mãos dadas – “heterogeneidade das formas instáveis de trabalho é a característica central do mercado de trabalho artístico”. Concluirá Menger: “que ironia que as artes, que tem cultivado uma posição radical em relação a um mercado todo-poderoso, apareçam como precursoras da flexibilidade” (Menger apud Segnini, 2007, p.20). E a realidade brasileira parece similar à francesa:

Ó, de todas as histórias que eu te contei, na verdade, tem vinte anos que eu vivo de dança, passando por vários lugares. Já tive contrato com salário, agora o outro com ... vendendo espetáculos. Agora, né, com esses editais, o que tá acontecendo, quando a gente fala assim: “ah mas o PAC é pontua,l não é qualquer coisa”. Não vivo com o PAC, os outros editais eles têm os períodos, começa pelos períodos...

Como bem explicita Segnini em relação à realidade de orquestras e companhias de dança estáveis, a organização do trabalho por projetos – também a lógica preponderante de editais periódicos com extensão máxima de 12 meses e projetos financiados por meio de leis de incentivos fiscais - contribui para o crescimento das formas flexíveis, intermitentes e precárias de trabalho. Em números: 84,8%da população de artistas trabalham sem vínculo empregatício , número muito acima da média do mercado brasileiro, em que 40% dos trabalhadores não possuem vínculo. Cenário de extrema concorrência, com muitos capazes e poucos recursos. Uma “luta inglória”, sempre em concursos, em que impera a lógica da “megasena”: ganhar é sorte ou mérito?

Se você pensa quanto é... Porque eu sinto assim, é igual Mega sena, sabe?
[...] Daí, você manda, né, você sabe que pode ter um monte de legais e um monte melhor, um monte... Assim, ou pelo menos muitos que poderiam. Porque eu acho que tem, né, eu falei o negócio da sorte, parece que tem uma hora, que deve ser sorte, assim.

Atualmente a gente está trabalhando com prêmios. A gente entrou em alguns desses editais, Pac, fomento que estão por aí... O Funarte a gente começou, o Damas por exemplo, o Damas em Trânsito começou com a Funarte, com o prêmio Klauss Viana. A gente pesquisou durante seis meses com esse dinheiro e, em seguida, a gente pegou um PAC pra montagem que a gente está realizando uma montagem com o material dessa pesquisa.

As aflições em relação “à lógica de projetos e editais” refletem anseios em relação à estrutura do trabalho artístico que fazem. Vêem-se numa situação contraditória: por um lado, enxergam sua atividade como “não comercial”, não sendo possível a manutenção das companhias apenas por bilheteria. Todavia, não querem contar com o subsídio público, como se fossem parasitas e, mesmo que a aceitem, podem ser cortados de um dia para o outro, “por constelações políticas”. O receio de tornarem-se dependentes “do paternalismo estatal”, nesse cenário instável, impulsiona saltos empreendedores. A união da classe é tida como necessária para que não se corra o riscos de mudanças radicais com as trocas de governo, assunto que será melhor explorado no capítulo 3.
[...] eu acho que o artista ele não pode depender da bilheteria, isso é irreal, é surreal [...] Na história, assim, há pouco tempo o artista ganhou dinheiro com bilheteria e tal. Então eu acho que o artista tem que ser mantido mesmo pelo poder público, não mantido pelo poder público mas assim o poder público ele tem que estar sempre observando e sempre, dando suporte pra coisa, mas também [...] eu acho que chega num momento da sua carreira, sabe, que eu tô meio de saco cheio disso, se bem que de saco cheio porque também eu comecei a vivenciar esses editais agora também apesar de muito tempo já [...] tudo bem tem edital, tem o projeto aí você vai e concorre né? Mas é muito perigoso, precisa tomar muito cuidado de se ficar só à mercê do edital, você tem que começar aprender a caminhar com as suas próprias pernas e pensar no edital como suporte, como uma ajuda [...] Paternalista total, aí meio que assim eu resolvi, não deu tempo ainda né mas eu quero sair disso entendeu? Quero sair assim, eu não quero depender disso nem que eu pague do meu bolso entendeu? Sabe quero ter meu estúdio pequeno, pago lá tal, se tiver edital e ganhar tem, ajuda né? Eu acho que todo mundo em que fazer sabe, assim de repente...

Eu acho que pra complicar tem essa questão da arte mesmo que a gente não se propõe a gerar lucros nesse sentido né mas e daí já.. fiquei perguntando: nossa parece que a gente fica falando assim ó então como a gente não gera grana né assim então a gente tem que ter alguém que subsidie a gente e que leve a gente no colo eu falei nossa! Estranho isso né? Porque é quase uma sensação de tipo assim: “olha, alguém precisa fazer dinheiro pra eu poder fazer a minha arte”. Mas, eu ainda entendo pouquíssimo dessas coisas de economia, mas, ao mesmo tempo, tudo gera dinheiro tudo né... Então eu entendi que não, não é assim, não é uma coisa que eu tô querendo que olhe eu vou fazer minha arte, não vou gerar dinheiro. Porque essa coisa de dinheiro, não é só dinheiro é valores. Tem outras coisas que a gente gera e faz girar é que é mais indireto, eu acho né.

[...] então agora as coisas vão e é com tudo, continuidade né? O problema é assim, agora bom, este ano, troca de administração: “o que será que vai acontecer no ano que vem, será que...”. Se bem que hoje em dia não é mais tão como antigamente que realmente troca de administração muda tudo de cabeça pra baixo. Existe uma série de empecilhos e é por isso que as classes precisam estar unidas né? Porque senão cada vez que troca, então vai um lá e diz: “olha eu sou muito mais bonitinho que aquela, muda tudo de novo né”, e você tem que ter um espaço para as pessoas desenvolverem os seus projetos né?

Ao mesmo tempo, o “impulso empreendedor” é uma garantia em cenário de risco extremo. Se os editais desaparecerem, pára-se de produzir? Os artistas da casa dos “trinta e poucos anos”, que começaram sua vida profissional sem nenhum apoio público, não hesitam em dizer que “acomodar-se é perigoso”. Para eles (depoimentos a seguir), a solução é inventar maneiras, dar um jeito, esticar-se, rodar-se, mas seguir. Nossa! Como esperar “ser sorteado” em um edital para começar a fazer?
Porque é assim, acho que depender de edital, por enquanto, é furada, também... que ainda é pouco....você só faz quando você ganhar? Aí é meio que estar entrando numa, sabe assim, meio uma dependência, né? Então, pode ser que assim, daí se a gente, sei lá, o próximo não vai dar, daí(...) nanã, alguma coisa tem que estar acontecendo, porque eu vou continuar de alguma maneira, não sei se vai dar pra ser grupo...Não sei o que que vai acontecer, não sei se vai chegar a virar um espetáculo, mas de alguma maneira, você vai achando um jeito de continuar, né, porque acho que conta isso também ,né, isso de esperar o edital vir pra fazer, nossa!

Eu não sei... esses editais aí... A gente foi lá pro Rio e ‘tava conversando com a Dani Lima; ela falou que no Rio acabou! Acabou... Acabou o Panorama do jeito que tinha, acabou o projeto da prefeitura que patrocinava durante todo aquele boom dos anos 90... Acabou, não tem, ‘tá tudo parado! Teve aquilo por que a prefeitura bancava, então as pessoas puderam criar e manter... E era um formato muito bacana, dois anos e podia ser renovado, mas... os editais tem isso, né? Quem ‘tá com o edital e consegue fazer e depois não conseguir, fica meio... num vazio. Acho que o Balangandança ‘tá vivendo um pouco isso, agora... tá nesse vazio.

Há outro lado da realidade dos editais que é ainda mais assombroso e perverso: os próprios artistas estão por trás da elaboração dos projetos e, num cenário de concorrência extrema, muitas vezes, atribuem-se a si salários miseráveis ou um número excessivo de horas de trabalho. A maximização da lógica financeira. Mais do que isso: são os próprios artistas que participam das comissões que julgam os editais, concedem prêmios e fazem ajustes nos valores demandados: autofagocitose de uma classe desunida. “Empregador-direto” nenhum conseguiria extrair tamanha mais-valia, como mostra o primeiro trecho de depoimento abaixo, cuja última frase é reveladora: “é lógico que eles bancaram: tava barato!”.

O nosso projeto do Fomento foi o único que eles bancaram tudo, né? Era 187.000, mas era muita coisa pra fazer! E, aí tem uma coisa, que é: eu escrevo e eu faço orçamento; e o Anderson me ajuda. Então, por exemplo, nesse caso do Fomento, a gente fez um projeto de um dia pro outro, que é essa falta de organização, que é um problema do grupo. E o orçamento, que eu fiz praticamente sozinha, é uma coisa que eu não tenho a manha de fazer. Então eu inventei essas oficinas, com todo mundo do Balangandança dando, lá no Jardim Pantanal, oficinas de capacitação para professor, produção de uma mesa redonda, entendeu? Cinco meses de temporada, cada mês um espetáculo diferente; eu bolei uma coisa ali... É lógico que eles pagaram tudo, mas pagaram tudo por que o que tinha ‘tava barato, entendeu?

O ano passado ... Eu não troquei minha televisão, tipo... sabe? Não rolou isso, foi pro trabalho. Eu pensei assim, “nossa...”, porque... eu ganhei uma grana! Eu me sustentei da história, mas eu não consegui fazer nada mais! Então é muito louco isso, por que... eu trabalhei demais, muito mesmo. Eu “tava dura” [...] o ano passado o Balangandança ganhou quatro prêmios, entendeu? Isso é que é uma viagem... Ganhou o APCA, mas não era grana, né? Ganhou o Caravana, o Funarte/Petrobras, ganhou o Fomento e ganhou o Klauss Vianna, pesquisa prática e teórica.
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2.2.2 “Vida dupla, tripla, quádrupla....”:
Então é uma vida dupla eu chamo né? Uma vida dupla, uma vida de professora e uma vida de artista. E artista assim, sempre mandando projeto e ganhando dinheiro menores [...]. Eu não pago o aluguel com os projetos. Agora com a companhia, eu estou conseguindo viver metade-metade: metade do dinheiro da companhia, metade do dinheiro de dar aula, mas é a primeira vez.

Artista-professor; bailarino-massagista; artista-produtor-professor; bailarino-diretor-professor; bailarina-psicóloga, bailarina-coreógrafa-professora-diretora-produtora-curadora, etc. Vive-se, sobrevive-se. Algumas vezes, as “ocupações paralelas” alimentam, trazem novo fôlego. Muitas vezes, sobrecarga. Afinal, ninguém é “ator global” e mesmo que em cartaz nos finais-de-semana, segunda-feira tem-se que acordar professor, massagista, psicólogo, etc. Por um lado, se a vida artística é instável, a ocupação paralela é o que, muitas vezes, garante o mínimo e permite a sua continuidade. Por outro, vidas duplas, triplas, quádruplas... Ampliação de experiência, como sugerira Pereira (2001), ou estratégia de sobrevivência?
[...] nessa época da companhia, eu fiz um curso de massagem, que é um curso técnico de massoterapia ,porque eu tava querendo fazer alguma coisa teórica, estudar um pouco sobre o corpo [...] eu comecei dar aulas, aquela história que todo mundo fica dando aula pra pagar [...] Daí o que aconteceu: 2006 eu tava começando a achar que ia ter que voltar a fazer massagem.

Dava aula,... Porque a gente ensaiava, era uma academia de dança de salão na Pamplona e aí a dona cedia o lugar para a gente ensaiar [...] mas nesse momento ainda era sustentada pelos meus pais na grande maioria.

[...] ela tem o trabalho dela como psicóloga, o A. trabalha com a companhia, outros trabalhos que ele faz, a D. também dava bastante aulas de piano na época, dava aula no conservatório e a gente estava nessa estória de um pouco da aula, um pouco a nossa estória de faculdade.

... Primeiro que a gente divide a gente tem que estar em vários outros trabalhos pra se sustentar porque a gente não tem esse ganho sempre, né? Os nossos dias de encontro acabam se reduzindo por conta, por vários motivos, por conta que a gente não tem um patrocínio ou financiamento fixo que garantisse o nosso salário, por conta que a gente tem que ficar em sedes que não são nossas e aí a gente tem que conciliar os horários dos locais, né? Então tudo isso, e isso com certeza compromete o modo como a gente aprofunda a pesquisa.

Aula de expressão corporal no curso de modas, aula de expressão corporal no curso de comunicação, aula de expressão corporal no curso de música e eu fiquei três anos dando aula assim. E aí eu mandava vários projetos e às vezes eu ganhava.[...]. E em 2005 eu entrei para dar aula na Belas Artes e foi o que me deu um pouco mais de estabilidade [...] E agora eu estou vivendo uma realidade ainda porque eu sou curadora do Cultura inglesa, agora eu estou fazendo a parte de trás também do edital. [...]

Aí o que rolou é que eu fiz um prova, entrei num concurso pro SESC, pra ver se eu conseguia, por que eu queria uma coisa fixa. Eu votei pra São Paulo, voltei a morar com a minha mãe, queria... né? Então eu vivia, não tinha a grana da casa, mas era sustentada de novo, né? Aí eu prestei o concurso do SESC, foram várias etapas... É, é uma... é um concurso pra instrutor de atividades, dá aula de tudo, ginástica voluntária, que era uma ginástica mais autônoma, trabalhava consciência corporal, tinha uma linha, assim, no projeto que eles tentaram... eles tiraram todos os aparelhos, era uma visão mais holística; mas... aí rolou que eu entrei [...] e dar muita aula. Eu dava tipo quatro aulas por dia e dava um total de vinte por semana [...] Aí... sei lá... Eu vivi um pouco de venda de espetáculo, mas sempre fazendo muita coisas, né? Dando aula em vários lugares... Tem gente que não faz isso também, né? Mas eu sempre dei aula, infantil, no Nova Dança... Fiquei sempre locatária do SESC depois que eu saí... [...] Então era meio... Essa coisa de fazer muita coisa... é dança, mas é diverso, precisa de muita energia, assim [...] em 2000, eu entrei no Oswald, que é o que me permite fazer isso, por que senão... Que é um dos únicos colégios que tem dança curricular... É legal isso, né? De ter uma carteira assinada, por que tem uma segurança. De um lado é legal, de outro lado é outro foco, por que é dentro de uma instituição, por que você tem que adaptar muito o seu trabalho, aprende pra caramba também, mas tem esse esquema de aula, uma aula em seguida da outra... até hoje eu dou aula assim. Eu dou aula das 7h30 às 8h30, das 8h30 às 9h30, das 9h30 às 10h30... é trash, é diferente de você chegar e dar uma aula de criação, de composição, de conceitos [...]. É muito mais desgastante e você ganha menos, proporcionalmente. Mas você tem a carteira assinada, né? Em janeiro tinha gente dura e eu não estava dura, por que ganho décimo terceiro...

Dentre as estratégias, algumas passam por um momento de escolha: parar de dar aula ou diminuir as aulas para investir na produção e venda de seus produtos artísticos.
[...] e eu parei de dar aulas para poder investir num trabalho comigo assim, ter alguém pra produzir, pra correr atrás, porque estava muito dividida, a aula estava me tomando muito tempo aí eu não conseguia...

Então a minha opção de não dar aula durante um tempo foi porque eu comecei a perceber isso eu precisava de mobilidade pra n coisas [...] E aquela performance me dava mais dinheiro que as aulas regulares.

2.2.3 Sobrecarga: dá pra dizer “não”?
Sobrecarga em mais de uma versão: vidas duplas, salários insuficientes, exigências de contrapartidas para além do processo criativo dos editais. A vida artística como laboratório de flexibilidade em versões malignas: sem proteção alguma; sem garantia de folga semanal, jornadas semanais infinitas, sem férias remuneradas ou licença maternidade. Nos finais de semana, está-se em cartaz e folgar durante a semana é luxo pra “ator Global”.
[...] o ano passado a gente ficou cinco meses em cartaz e a gente quase se separou no grupo, né? Por que todo mundo continua fazendo suas coisas. Você não tem um esquema, tipo Marco Nanini, que vai lá de quarta à domingo e de segunda e terça não faz nada; não tem isso. É uma coisa de não parar, não parar corporalmente, né? Então fica punk a coisa da dança, assim...

[sobre estar participando de 3 processos de criação concomitantes] Mas é um pouco a realidade nossa é meio assim né. Você não consegue se sustentar com um projeto só, infelizmente então você tem que fazer mil coisas e isso cansa pra caramba, para conseguir se sustentar, morar em São Paulo e trabalhar com dança, infelizmente a realidade é essa.

O Fomento é um edital que agora está mudando um pouco, está exigindo menos contrapartida, mas nessa edição que a Marta pegou que a gente participou, eles exigiam muita contrapartida: eram 60 horas de workshop, o espetáculo tinha que ser apresentado em teatro da prefeitura a preço popular e tal.... O Pac também tinha uma contrapartida e tal, então eu falo ideal no sentido de você poder fazer a pesquisa, que é o porque você recebe o dinheiro, sem ter que justificar essa pesquisa com workshop para a comunidade, que pode ser muito legal se cabe dentro do projeto, mas às vezes não cabe e você tem que dispensar uma energia enorme sua para .... tem que mudar de caminho por um tempo pra depois voltar para a pesquisa, ou se dividir porque você, se justificar seu trabalho criativo por outro caminho que só o projeto criativo não justifica, não se justifica.

Então a gente ganhou o Fomento e o Klaus Vianna, dois projetos que era pra serem feitos num ano; então o que aconteceu, que acumulou, é que a gente ganhou dois projetos, que eram pra ser feitos separados... e eu vou dizer o quê? Que eu não vou querer o prêmio? Muito engraçado também, isso... Quase a gente falou não, não, a gente não quer; mas aí nessa época era até cem mil, agora não é mais, é menos grana... era até 150... E agora diminuiu, mas tem essa coisa da pesquisa teórico-prática, que a maior grana também. Com a grana que é agora a gente não teria conseguido fazer. Envolveu bastante gente, assim... Total de pessoas envolvidas era tipo 215, sabe, quando eu coloquei? Por que tinha que adequar a ONG, mais o grupo de estudos, que eram umas 12 pessoas. Uma Ong que se chama Instituto Alana [...] Então era muita coisa... Aí eu percebi que, por exemplo, só a publicação já era um trabalhão, entendeu? Só o site já era um trabalhão... De grana, também... Aí a publicação a gente só conseguiu fazer por que o SESC apoiou; e era uma seminário também...

Talvez tanta sobrecarga faça parte de uma fase de acomodação e aprendizado, até que a ilusão de “finalmente, existe algum dinheiro para realizar os sonhos” se dissipe, como já está acontecendo. (Afinal, o Secretário do Estado da Cultura, economista renomado, adiantou-nos o cálculo: uma companhia com padrões de excelência custa 13 milhões de reais).
[...] eu fui fazer o orçamento, eu falei “não dá... não dá...”. não vou fazer uma coisa que não dá, por que foi muito sacrificante o ano passado, entendeu? Então não dá pra fazer e todo mundo não topa mais, também... Topou o ano passado, mas todo mundo nesse não...

2.3 Instabilidade: como manter a criação?
De edital, “não se vive”; “paga-se aluguel da vida dupla”, do trabalho de professor, dos bicos e profissões alternativas. Como manter o trabalho criativo? Como ter continuidade?

O Fomento apóia X projetos em cada edição. Quantas mil pessoas estão precisando de grana pra trabalhar? Então são editais que dão um dinheiro muito pontuais. As pessoas não tem segurança nenhuma de que elas vão conseguir ter um trabalho continuado, continuar uma pesquisa, assim como a lei de incentivo também não garante essa continuidade,. Então acho que é muito difícil nesse sentido dessa instabilidade você não sabe quando você vai ser aprovado num edital, quando você não vai.

Como grupos independentes sobrevivem, se cada membro tem que “correr atrás da vida por fora”? Como ter energia para essa manutenção? Como manter o trabalho criativo vivo, pulsante e sobreviver? Alguns grupos deixam de ser grupos, pois os membros vão “dar seus pulos” por aí; outros, investem na venda de espetáculos que garanta “um mínimo”; outros, pesquisam sem grana – com caixa próprio - e esperam realimentar-se com a circulação; ou bancam-se por fora e sobrevivem de permutas.
É qual que é a continuidade disso assim, como que é possível, que foi uma questão que a gente levantou até no segundo semestre: como que a gente vai conseguir manter o trabalho do grupo se não tem mais o Pac, não tem mais o dinheiro do prêmio [...]. Então como que a gente ia conseguir fazer essa continuidade, aí claro cada um deu o seu jeito, cada um deu os seus pulos, eu fui fazer um trabalho em Santos, os meninos já tinham um outro trabalho né.

Então esse ano, por exemplo, pra contar com elas eu precisava oferecer; então a gente ‘tá se mantendo por que todo mundo topa se encontrar duas vezes por semana, ou se encontra uma vez fixa e, quando precisa, outra. Por que a gente teve apresentação em fevereiro, num lugar, a gente teve em março, a gente teve em abril e vai ter agora em maio. Então você sabe que vai ter um cachê mínimo, né? O que alimenta a pesquisa é você poder apresentar e ter um retorno financeiro, não necessariamente os editais.

a gente meio que já está pesquisando e a gente está no contato com a empresa, ainda não saiu o apoio de fato e a gente já está [...] Então, de uma certa forma, a gente já está fazendo a pesquisa sem a grana que seria e aí quando a grana chegar a gente circula...

[...] você tem que, ou bancar independente, né saber que é o caso do grupo[...] a gente está há nove anos juntas e a gente praticamente todas as pesquisas coreográficas nós bancamos; a gente trabalha num esquema de troca. A gente não tem uma sede própria, mas a gente está em lugares que ou a gente presta serviço ou paga uma coisa que é irrisória, assim tipo não dá nem pra dizer que é aluguel, mas é parcerias mesmo.

Bem ou mal, prêmios contínuos facilitam a permanência de um mesmo grupo e da pesquisa comum. Uma das entrevistadas, analisando o que mudou no cenário com a existência de editais nos últimos anos, fala em “não ter momentos de entressafra tão grandes”. A metáfora com a realidade agrícola é muito apropriada, se comparada à realidade da reforma agrária, em que se dá a terra, mas não os meios para que comece uma produção; tampouco fluxo de caixa suficiente para se sobreviver a todas as etapas: preparação do terreno, semeadura, plantio e, finalmente, vencendo as intempéries naturais, a colheita.
[...] o que é legal, inclusive porque senão também a gente já começa a ser daquele jeito né, e aí a gente ganhou de novo então assim não dá para garantir que a gente vai continuar ganhando mas está nos dando a possibilidade de fazermos por um ano e meio, quase dois anos, de ter uma continuidade de trabalho porque a gente está com as mesmas pessoas, foi essa opção que a gente fez então a gente quer trabalhar com as mesmas porque aí sim a gente começa a desenvolver alguma coisa, porque senão começa tudo de novo né mesmo que já tenha o meio trabalho de (...) como companhia trupe a gente está trabalhando e com isso vem o lucro né, então querendo ou não... Tem uma continuidade e uma continuidade também que está sendo possível pelo prêmio né? Você tem... você está trabalhando, você está recebendo.

2.4 Fetichismo da mercadoria: quando dizer “não”?
Como já salientara Bourdieu, “a lógica comercial é preponderante em todos os estágios da produção e da circulação de bens culturais” (Bourdieu apud Segnini, 2007, p.7). Desejavelmente, a existência de editais culturais, seria uma forma de “contornar a lógica mercantil de produção e circulação”. Poder-se-ia pesquisar e não se chegar a produto comercial algum.
Ao contrário do que se poderia esperar do advento dos editais, os valores baixos dos prêmios e cortes – império da lógica financeira - empurram salários para baixo (afinal, os outros custos são fixos!). E a existência deles é usada como argumento para compradores de espetáculo baixarem cachês, como se o valor da obra fosse alterado pela existência de subsídio.
[...] tem uns momentos que mudaram assim desde que eu estou, eu estou em São Paulo há onze anos, então tinha quando eu cheguei aqui existia um mercado de venda de espetáculos muito mais fértil, muito mais potente. A gente fazia, na maioria dos grupos que eu conhecia aqui, a gente trabalhava sem nada assim, vamos lutar, vamos começar a trabalhar, vamos pesquisar isso, vamos pesquisar aquilo as vezes ficava seis meses ... Pesquisando sem salário, sem nada, todo mundo na vontade né, porque também sabia que o produto era possível de ser vendido, [...] Isso mudou sim, primeiro porque tá difícil pra todo mundo né, eu vejo festivais que estão falando: olha esse ano não vai rolar porque não conseguimos verbas, aqui mudou porque a gente tinha um grande... né o Sesc fazia esse papel de ... da instituição que tinha grana pra cultura né, comprava os espetáculos e tal só esses editais eles estão também se isentando, então os cachês não são tão bons [...] mas caiu assim porque o valor dos cachês diminuiu, então não tá tão fácil assim, é engraçado porque tem uma coisa assim, porque tá todo mundo cheio de produto...

Além das distorções do próprio mercado como, por exemplo, espetáculo infantil ser mais barato que espetáculo adulto.
Aí, com o Balangandança, a gente conseguia vender os espetáculos... Pra SESC, basicamente. Uns projetos, compravam... Mas vendia barato também, por que o preço de espetáculo infantil não é o mesmo do espetáculo adulto. Era legal por que entrava tanto em teatro infantil quanto em dança. Mas em 97 ainda não tinha isso, né? Era meio batalhando, também, pra caramba.

Persiste a questão: como sobreviver? Além das “vidas duplas”, as obras artísticas são produtos comercializáveis no mercado. Dentro da lógica comercial, para se vender, há de se levar em conta “o cenário do mercado”, os preços aplicados, o cenário da concorrência. Criam-se menus de trabalhos, pocket shows, adaptações a lugares “convencionais e não convencionais”, etc. Ao mesmo tempo, as restrições do circuito de circulação e distribuição influem muito nesse cenário, como aprofundaremos no capítulo 3 (item 3.5).
O [espetáculo] era também um trabalho muito grande, duas câmeras, três telas de vídeo, precisava de gente... 2005 eu fiz um trabalho chamado “Instantâneo” que eu retomei ele, foi com o Jorge Penha - tá sendo até hoje na verdade, - que foi um trabalho que eu tentei, eu falei: ‘ah vou fazer um trabalho que é o que eu gosto de fazer que é improvisação’, mas também pensei bastante na questão do contexto aonde eu tava, os cachês que se pagavam não dava pra cobrir o “Me disseram”... Eu precisava vender o “Me disseram” por 5 mil reais, que lugar que paga hoje em dia e que não foi inédito também né [...] eu fui achando meios. Então teve uma hora que eu fui falar, eu tenho um espetáculo que é 6 mil, eu tenho um espetáculo que vendo por 4 mil, eu tenho um espetáculo que eu vendo por 3 mil, eu tenho um espetáculo que eu vendo por 500 reais. Então se a questão da criatividade relacionada com grana tem a ver, influi é.[...]

(...) então vamos fazer nós dois e a gente fez o Lar Doce Lar, não sei se você viu isso, aí a gente teve o Lar doce lar e rolou né a gente ficou ali anos agora que a gente parou porque (...) cansa. Mas ele rolou e era de vendas, (...) vendeu, vendeu, vendeu, vendeu... fomos pra um monte de festival, Sesc, rodamos o estado, tivemos um monte assim, tivemos muita coisa também e isso a gente teve um investimento inicial nosso que era pequeno também pela questão que estavam, questão né do salário e nada....

[...] o trabalho solo por exemplo, eu não tentando criar nada no espaço de poucos anos e ficar, e tentar rodar os que ... porque tem coisas que ...quase não rodaram [...] As vezes eu tenho essa chance, então agora na Fiesp a Renata Melo falou você dança se você quiser, eu sei particularmente que ela gosta mais de um trabalho meu do que do outro, não vou falar, não vou oferecer o outro porque eu sei que ela não gosta tanto. Então eu ofereci esse porque eu acho que ela gosta mais e também é uma chance que eu tenho de apresentar um trabalho que eu fiz em 2005 então vai ser um noite, então eu vou ensaiar que nem louca pra dançar um, então é um pouco o esquema de festival, porque em um noite eu vou ter 800 pessoas na platéia, mas do que em todas as outras 25, sei lá eu já fiz esse trabalho umas 20 vezes, não chega o tempo. E é uma experiência nova também, dançar pra tanta gente.

Nas adaptações, o que “fere os princípios artísticos da obra” e o quê pode significar uma nova experimentação de formato? Quando dizer: “não, isso eu não faço”? Como dizer não, se a grana é curta? Qual o cachê mínimo? Quem estabelece esse mínimo: o mínimo da aflição, angústia e do cheque especial?

E eu sou bastante chata em relação a questão técnica de luz, montagem, tananana... em vez de ficar sofrendo... e tem a ver com a minha linguagem, que é improvisação, basicamente eu trabalho com improvisação, então o meu interesse de fazer trabalho em espaço alternativo. Então por isso que eu não acho que me vendi, por exemplo, pro SESC Pompéia, que eu fiz o espetáculo na rua porque pra mim aquilo me interessa né, mas, por exemplo, essa grana que eu ganhei agora que está me salvando...

Eu posso falar que eu vivo do Balangandança, sabe? [...] O Balangandança tem uma coisa assim: se adapta ao espaço, você pode fazer em espaço aberto... não é só “faço qualquer coisa”, mas a gente se adapta, seja pra fazer o espetáculo, seja pra manter as pessoas, acho que tem essa preocupação. Eu tenho essa preocupação. Não tem nada, vai ter uma apresentação, que vai ter uma grana, vamos fazer, sabe? Vai ter uma performance, vamos fazer... Não tem essa “ai, não vou fazer, por que sei lá o que”, não tem essa... Tem um... nada que vá contra o que a gente acha, mas tem um despojamento que à vezes... ser muito exigente com as coisas... Se não a gente não teria feito!

Por alguns meses, uma artista teve estrutura para trabalhar, fazer a criação e montagem, sem ter que correr atrás de tudo: sentiu-se num conto de fadas, com uma “vida de princesa”.
Eu falo uma vida de princesa porque o que aconteceu, eles me deram essa grana que seria... eu não tive então tendo 2 mil por mês durante três meses eu não precisei ficar me preocupando em dar workshop, em correr com outras coisas e eles também davam todo apoio de produção: gasto de produção de cenário repassei tudo pra eles parte de Ecad ... Toda parte de produção que normalmente tem que fazer, eles fizeram pra mim, então eu realmente fiquei só com a parte artística e lógico alguma coisa de produção mas assim pra eu conseguir uns dias de ensaio lá então né tem que saber como fazer as coisas. E foi quando eu pude realmente desenvolver tranqüila o trabalho, paguei todo mundo que trabalhou comigo: quem fez o vídeo, o design da luz, confecção de figurino, a costureira, a maquiagem.

Sem dúvida, aspectos da atualidade que influem radicalmente na criação artística. Muitos novos formatos e linguagens foram desenvolvidas nessa tensão entre arte e mercado e muita criatividade para sobreviver: achando brechas, fendas, por onde a vida criativa pode pulsar.

Que era um pequeno edital, assim... você ia lá e passava por uma curadoria, mostrava um trechinho do trabalho e eles ta davam uma verba que não era super, até não sei quanto seria hoje mas era pequena, só para você viabilizar aquilo, ai tinha uma mostra grande no SESC Consolação, tinha todo ano. Ai para umas dessas mostras a gente resolveu, eles davam um tema e tal, agente resolveu fazer e dali, assim... quando iam surgindo essas oportunidades assim, ou essas chances a gente fazia e por coincidência a gente foi trabalhando em muito lugar junto assim, sei lá, um coreógrafo ia chamar alguém, ai chamava eu, eu chamava ele e ai assim muita coisa [...]

E a gente, a nossa pesquisa em dupla, a gente começou na faculdade, sem dinheiro nenhum, do curso mesmo, daí a gente conseguiu o Feminino e daí a gente ensaiava e rolou uma grana de estar ali apresentando. E aí ,depois, a gente conseguiu o PAC pra criar “Jardim de rosas mudas” [...] Na verdade, o projeto do “Jardim de rosas mudas”, a gente começou em 2006 e a gente trabalhou 2006 o ano todo, no final do ano surgiu o PAC e a gente mandou e a gente conseguiu realizar a montagem na Casa das Rosas com o PAC. Mas a maior parte da pesquisa, a gente fez sem grana nenhuma.

2.5 Dá pra viver de dança em São Paulo?
2.5.1 Paitrocínio: só os ricos fazem arte?
Assim como outras profissões (medicina, odontologia e psicologia, por exemplo), a carreira artística demanda um investimento inicial alto e um tempo de “maturação” até que se consiga dela viver. Nas entrevistas, a possibilidade das famílias contribuírem para o sustento dos entrevistados é situação comum, principalmente logo que terminam a faculdade.

[...]às vezes dá essa sensação né só os ricos que fazem arte, não-sei-o-que, não-sei-o-que, não-sei-o-que... o que eu acho é que nessa situação, se a gente for falar isso, é a mesma coisa o meu irmão é um engenheiro e trabalha numa empresa porque ele pode ir para um colégio particular e ir pro vestibular, é a mesma coisa...

[...] eu também [era sustentada pelos pais]. Tinha acabado de me formar chegado em São Paulo, então ainda tinha a ajuda do meu pai que mesmo a grana das aulas era pouca coisa, era um projeto da prefeitura que pagava muito pouco, pagava 7 reais a hora-aula e que é um (...) também né, é porque não deixa claro e a gente nessa época começou a oferecer um workshop também.

É por que eu fiz a faculdade em Campinas, então... Tava pensando que foi minha família que me sustentou e bancou... e é integral, né? Então tinha essa coisa de não pagar, mas de morar lá. Então meu pai sustentava e eu já fui fazendo uns trabalhos, assim... aí eu fazia um monte de coisa, meio... tipo, no bandejão vendia camiseta, meia, incenso e tal... mas não tinha nada com a dança... ‘

O momento em que, finalmente, conseguem se sustentar do trabalho com dança é um marco memorável.
Quando saiu a Funarte, saiu também o Pac para o “Jardim de rosas mudas” e a Marta Soares convidou a gente para um projeto dela que pegou um Fomento. Em 2007, a gente começou a trabalhar com o dinheiro desses três trabalhos e aí foi a primeira vez na minha vida que eu me sustentei trabalhando com dança, que eu me sustentei sozinha, mas isso acumulada de trabalho, três grupos, três diretores(...)

E fazia umas performances numa boate que abriu em Campinas, na Pachá Brasil. E foi na inauguração. E era muito bom, por que foi num ano em que eu tinha acabado de me formar e eu trabalhava de final de semana, à noite e quando pintava apresentação [...]. É, era a maior grana, eu vivia... Tinha acabado de me formar, pagava todas as minhas contas... Então, acho que desde que eu saí da faculdade, assim, mesmo morando em Campinas, meu pai parou de me bancar; e era uma coisa que eu queria, também... não queria depender.

Poder contar com o suporte familiar nas horas de aperto ajudou-os a manterem-se na profissão, apesar das instabilidades e impermanências. Se o modus operandi é precário e inseguro, a família em que nasceram ou que constituíram é, muitas vezes, o porto seguro. Muitas vezes, foi o diferencial para conseguirem permanecer nos momentos de aperto.
[...] essa coisa você poder fazer outras coisas ali, então eu podia dar aula de inglês que era uma facilidade. A outra é você poder contar pessoas, como sua família, você liga lá e fala ó apertou, ferrou e muita gente não tem essa possibilidade mas, com certeza eu não estaria em SP neste momento de pausa né. Teve um momento mais difícil quando eu quase voltei pro interior é o meu pai falar não voltar a gente te mantém aí, e aí depois rapidamente eu já consegui trabalho, consegui... mas eu conheço muita gente que não teve essa oportunidade, principalmente gente do interior né que tem que vir pra cá pra tentar alguma coisa.

Se as famílias foram “portos-seguros” no início da jornada, constituírem suas próprias famílias é, em outro momento, outro balizador. A juventude um componente que permitia mais risco.
Tem uma coisa de juventude, também...É, “vamo lá”, né? Por que todo mundo também, do Balangandança tem família, tem filho, então não tem mais esse negócio que eu falei da juventude, tem umas coisas que precisa dar conta; e aí quando você pega um projeto de pesquisa que você faz, precisa de um tempo e, aí, as pessoas largam as coisas e depois não tem mais.

2.5.2 Quem fica?
[...] tem uma situação específica assim de nós duas, porque tem amigas, colegas bailarinas que se formaram na nossa turma e que foram para outros lugares: uma foi dar aula regular, outras foram desistiram de trabalhar com dança, foram fazer história, trabalhar com história da dança, outra foi fazer musical, então canta aí faz Miss Saigon. Por exemplo, pensando na nossa turma de 25 pessoas que se formou junto com a gente a gente é exceção. Então eu acho que dessas 25 quem realmente está se sustentando acho que somos nós duas.: E a Déia agora. A Déia agora e quem realmente escolheu trabalhar com dança/educação também está feliz com isso e tal beleza, mas eu acho que tem uma coisa... a gente foi muito insistente assim de tudo quanto era edita,l desde de produção de video-dança a gente resolveu escrever um vídeo-dança...

Por exemplo, aliás ano passado quando eu fui buscar uma interprete uma bailarina lá na Unicamp tava uma luta de foices porque eu não era a única coreógrafa de São Paulo e tava indo na Unicamp catar intérprete porque foi uma demanda pra pessoas de intérpretes aqui em São Paulo que a cidade não supre [...] na minha época imagina que era assim na Unicamp!É um momento de grana por mais que a gente reclama de grana então as meninas estão se formando e ganhando R$ 60.000 para rodar o interior com o TCC, trabalho de TCC... E elas ganham. E aí enfim, entendeu então da minha turma tem eu e a Marina ainda trabalhando as outras pessoas ficaram muito nessas cidades trabalhando ou dando aula ou fizeram outras coisas, foram fazer outras faculdades.
2.5.3 “eu ia me circulando”....
“É o que eu vejo, na maioria os próprios artistas acabam sendo os próprios produtores”, diz uma artista, bailarina e diretora. Seja por falta de profissionais no mercado ou por falta de recursos para remunerar profissional da área. De qualquer maneira, há um consenso de que são competências diferentes e que, ao abarcarem também a produção, ambos – artístico e produção – ficam deficientes.[...] ou então você põe alguém para fazer isso, mas mesmo se você põe alguém pra fazer você tem que estar lá, né não é alguém e você fica no sofá. é diferente [...] eu sempre fui mais inquieta [...] eu ia me circulando.

Ao mesmo tempo te dá uma apropriação mesmo do que você está falando né [...] mas eu acho que são competências diferentes eu acho que podia, porque não é só aqui em São Paulo, tem poucos produtores de dança.[...] Então isso é uma coisa que de uns tempos pra cá a gente começando a trabalhar com as pessoas na produção, trabalhar nessa situação eu faço questão que tenha alguém sempre no momento do espetáculo.

[...] é uma falta de profissionalismo da área, de saber o que é necessário pra você não ficar só na sua sala de ensaio, mas depois o que você faz com isso. Então é uma falta de entender como é que o mercado funciona, das necessidades, então eu acho que isso é uma coisa da dança, de saber e agora que a gente tá começando e por isso tá aparecendo essas pessoas que tão fazendo produção de dança. Então eu acho que as próprias pessoas da dança contemporânea tem que começar a pedir esses profissionais que eles vão aparecer.

[...]e a gente não tem dinheiro para pagar produção então vamos fazer a gente e aí...Não funciona sem uma produção né? [...] A gente quando a gente chegou em São Paulo, a gente entrou em contato com alguns teatros que a gente estava chegando, não conhecia muita coisa então a gente foi atrás. A gente queria fazer temporada, a gente conseguiu a galeria Olido [...]

[...] a gente fazia a produção, mas que ficava enrolado, por conta que o trabalho artístico tava né... mas agora a gente tem uma pessoa que assumiu, tipo eu vou estar no grupo, mas o meu papel é só esse, que a gente dividia, né? [...] Então ela assumiu e a gente chamou uma pessoa de fora, mas que tá super afim de conhecer o grupo mesmo. Elas duas estão juntas, então é legal que tem uma pessoa com uma visão de fora que é que... tem essa linha de produção que vem do teatro, não vem da dança,


Muitos ainda sentem falta de profissionalismo: é uma coisa caseira, com funções pouco definidas e pouca clareza de papéis. Uma situação muito delicada ter um produtor pouco confiável: não só é a pessoa que cuidará do dinheiro, mas, antes de tudo, como lembra uma artista entrevistada, “é a pessoa que vai falar por você”.
Eu acho que é difícil essa coisa meio caseira, por que quem ‘tá dentro faz de um outro jeito. Tem um “carinho”, um envolvimento, que é diferente de quem não é. E eu acho que as coisas na produção elas são muito obscuras.... O produtor vai produzir, mas não é um faxineiro. Se fosse uma coisa de verdade, assim, nenhum produtor faria isso, entendeu?

Produtor executivo, aquele que olha o projeto, gosta do projeto, coloca embaixo do braço e ajuda a fazê-lo virar realidade, são raros. Afinal, diferentemente do cinema, cujos produtores são exemplos de eficiência ou do teatro “Global”, grande parte das produção não são bons negócios (do ponto-de-vista comercial). Paitrocínio, cartão de crédito, cheque especial e permutas, as saídas. Eu sempre ensaio nas Belas Artes também, então eles me dão esse espaço.

Por que o Brincos, não. O Brincos foi grana, meu cartão, o cartão da Dafne, todo mundo “vamo lá” e...

Então tem essa realidade de público e grana de bilheteria. Na verdade, é um espetáculo que não se sustenta com a bilheteria por si só, porque tem luz, tem técnico, tem gente trabalhando porque a bilheteria se cada um pagar 10 reais, 300 reais pronto por noite e isso não paga tudo. Então, na verdade, é um espetáculo que precisa de um incentivo “fora” para acontecer, nesse caso né porque tem um espetáculo lá no teatro e tal daí...

Lógico que assim, eu paguei todo mundo mas as pessoas também me deram apoio então por exemplo: a Kika é vídeo artista ela tem uma produtora, então é óbvio que ela não me cobrou locação de equipamento de câmera e de exibição ela deu um apoio, então por isso que pra mim só (...)

Antes, eram poucos projetos que se escreviam por ano. Hoje, são inúmeros editais. Novas formas de organização, novas demandas e funções, como os relatórios exigidos pelos editais quando se ganha um prêmio. Quem faz?

Sou sempre eu que escrevo os projetos... Pra não mentir, juntou eu a Lílian e o Peck, a gente fez meio junto. Eu fiz uma parte, escrevi o grosso e o Peck ajudou pra caramba, a gente escreveu junto. E a concepção foi meio junto. Nos outros trabalho a concepção é sempre minha, sempre foi minha... E eu nunca ganhei pra isso [...]Mas tem um negócio que eu queria falar, que eu acho que depende do esquema que o grupo faz, também... Então tem essa coisas da clareza da produção, que é difícil, tem as divisões de grana, Daí o relatório... o relatório quem faz sou eu, entendeu? E é um puta trampo também, não tem grana pro relatório. Eu não pus, entendeu?

2.6 Artista trabalhador:
2.6.1 Rotina
Outra característica da sociedade contemporânea em sua relação com o tempo é “sua revolta e relação ao tempo rotineiro, burocrático, que pode paralisar o trabalho” (Sennett, 1996, p.35). Entretanto, desde o século XVII, discute-se o papel da rotina: libertadora ou aprisionadora?
Na Enciclopédia de Diderot, por exemplo, discute-se o valor da rotina para que as pessoas possam ter o controle de suas vidas e acalmar-se: “graças à repetição e ao ritmo, o trabalhador pode alcançar ‘a unidade mental e manual’” (Sennett, 1996, p.38). Contemporâneo do pensador francês, Adam Smith chega a outro tipo de conclusão em relação à organização da rotina no tempo na nova ordem econômica – industrial – que ele testemunhava e sobre a qual pensava. A fábrica de alfinetes de Smith – exemplo prático com que Smith trabalha em sua principal obra, o “A riqueza das nações” (1776) - vira, à medida que o texto avança, segundo Sennett (1996), um lugar sinistro:
[...] em certo ponto, a rotina torna-se autodestrutiva, porque os seres humanos perdem o controle sobre seus próprios esforços; falta de controle sobre o tempo de trabalho significa morte espiritual [...] O fazedor de alfinetes torna-se uma criatura ‘estúpida e ignorante’ (Sennett, 1996, p.41).

No final do século XVIII, Smith já se preocupava com as conseqüências do trabalho rotineiro para o caráter. Primeiro, constata que a “simpatia” ou a capacidade de um ser humano ser tocado ou compreender as tensões e sofrimentos do outro, algo “mais sutil sobre o caráter individual”, depende de algo que nos empurra para fora da previsibilidade: as manifestações de simpatia fazem parte do “reino de tempo espontâneo” (Sennett, 1996, p.42). Consequentemente, “para desenvolvermos nosso caráter, temos que fugir da rotina”.
A lógica da rotina teve seu apogeu nas décadas de 1950 e 1960, em pleno capitalismo industrial. Fábricas que funcionavam sob o modelo “taylorista” do tempo métrico, da hierarquia e da engenharia racional. Mas o tempo rotinizado aqui não era uma simples prisão para os trabalhadores: passara também uma arena onde trabalhadores sindicalizados podiam exigir seus direitos – dava-lhes poder. Para esses trabalhadores, após grandes depressões, guerras e, principalmente, constantes reformulações nos modelos fabris, a rotina ganhou o status de proteção. Não é uma avaliação maniqueísta: “pode decompor o trabalho, mas também compor uma vida” (Sennett, 1996, p.49).
Contudo, a substância do temor de Smith continuou pulsante: mesmo insatisfeitos com o trabalho, cujo conteúdo se esvaziava paulatinamente, homens e mulheres não se revoltavam. Ou seja, “resistência à rotina não gera revolução [...] o trabalhador da rotina não tem conhecimento de como fazer a mudança”. Já para Diderot, “as rotinas de trabalho geram narrativas, à medida que as regras e ritmos do trabalho evoluem aos poucos” (Sennett, 1996, p.50).
Trazendo o debate para a atualidade, “hoje estamos numa linha divisória em relação à rotina”. Em tempos de flexibilidade, a rotina está morrendo nos setores dinâmicos da economia. Entretanto, a maior parte da mão-de-obra “permanece inscrita no círculo de fordismo”. Para Sennett, não é tarefa fácil julgar ou refletir sobre esta realidade: se considerarmos a rotina como Diderot, a questão será discutir “condições de trabalho”. Entretanto, se estamos dispostos a “encarar a rotina como inerentemente degradante”, atacaremos a “natureza do próprio processo de trabalho” e creremos nas virtudes da espontaneidade. A questão que se coloca, então, para Sennett é: “a flexibilidade, com todos os riscos e incertezas que implica, remediará de fato o mal humano que ataca?” e “como poderá fazer o ser humano mais engajado?” (Sennett, 1996, p.51).
Nas falas dos artistas, situação paradoxal é latente: diante de tanta insegurança e incerteza, almejam uma rotina de criação, a possibilidade de um “dia-a-dia” de estúdio. O artista, que sempre foi o “marginal por excelência”, sonhando com estabilidade. Por mais estranho e antiquado que pareça, talvez querer estabilidade hoje, em tempos de extrema flexibilidade , em que o homem de sucesso é o que se adapta às mudanças rapidamente e não as teme, seja manter-se à margem do mainstream....
[...] na verdade o que a gente quer fazer né é, o dia-a-dia, a gente quer ter um dia-a-dia. Eu acho que não isso que a gente quer ter, a gente quer ter um dia-a-dia de artista que vai lá tem o seu atelier, tem o trabalho, tãnãnã tananá. Não é um momento de se retirar o mundo ou de ... que é diferente, é o ensaiar, é o pesquisar .

2.6.2 Salário, carteira assinada...
Não só rotina: gostariam de ter salário, carteira assinada, um mínimo de segurança. E suas jornadas duplas, triplas, buscam alguma possibilidade de estabilidade. Invejamos poucos bailarinos que têm condição estável, mas sentem-se até ”meio ridículos” por isso.
Eu acho que o artista tem que ser respeitado como trabalhador, eu acho que a gente tem que puxar esse lado né, de que paga os seus impostos e tem o décimo terceiro salário sim, por que não? É uma profissão que começa muito cedo a se profissionalizar, sobretudo o intérprete da dança, se ele quiser desenvolver um tipo de dança que abarca uma série de estilos e técnicas diferentes, é uma coisa da juventude, da fisicalidade, que acaba muito cedo também nesse aspecto.

[...] , vou falar uma coisa que eu acho legal, mas é ridículo, é exatamente por causa da nossa miséria, uma coisa que eu achei legal dos bailarinos serem funcionários e serem funcionários públicos bailarinos e ter um salário bom.


2.7 Conseqüências da instabilidade: corrosão do caráter?
2.7.1 Tempo: não há longo prazo
Sennett afirma que uma das principais diferenças entre a geração de trabalhadores da década de 1970 e os trabalhadoras do final do século XX está na sua relação com o tempo. O tempo, para os primeiros, era previsível e “sua vida faz sentido [...] em uma narrativa linear” (Sennett, 1996, p.14). Dessa maneira, os trabalhadores dessa geração podiam sentir-se “autores de suas vidas”.
Já os “filhos dessa geração” têm uma vivência diametralmente oposta: “por mais prósperos que estejam, [...] receiam estar a ponto de perder o controle de suas vidas” (Sennett, 1996, p.18). Uma vida profissional flexível, com muitas mudanças e riscos, assim é a vida de trabalho dessa geração. Para Sennett, o medo de perder o controle vem desta instabilidade, cuja vivência gera uma sensação de se estar colocando a “vida interior, emocional, à deriva” (Sennett, 1996, p.19).
Vive-se “novas maneiras de organizar o tempo [...] [e o] sinal mais tangível dessa mudança talvez seja o lema ‘não há longo prazo’” (Sennett, 1996, p.21). No plano concreto e material, talvez os ajustes sejam toleráveis; mas as conseqüências para o caráter pessoal é que trazem a sensação da vida emocional à deriva. Em relação à vida pessoal, o “não há longo prazo” pode significar “não se comprometer e não se sacrificar”. Em lugar da permanência e da narrativa linear anteriores, vive-se um tempo de impermanência, flexibilidade e “valores de camaleão”. Fica a dúvida: como ter consistência?
Conclui Sennett: o homem comum de hoje é aquele cujo sucesso depende do comportamento flexível e, nesse caminho, do enfraquecimento do caráter.
O que é singular na incerteza de hoje é que ela existe sem qualquer desastre histórico iminente; ao contrário, está entremeada nas práticas cotidianas de um vigoroso capitalismo. A instabilidade pretende ser normal [...]. Talvez a corrosão de caracteres seja uma conseqüência inevitável. ‘Não há mais longo prazo’ desorienta a ação a longo prazo, afrouxa os laços de confiança e compromisso e divorcia a vontade do comportamento (Sennett, 1996, p.33).

No cenário atual da dança, essa “urgência do curto prazo” pode ser vista, por exemplo, nos grupos com prazos de validade, datas para começar e terminar, com a duração de um prêmio. Um novo elemento no cenário da dança paulistana: se rios perenes duram a estação das chuvas, as companhias perenes duram o “tempo dos editais”. Será essa a tendência atual? Se sim, talvez o lado predatório dos editais seja maior do que cremos e só teremos essa dimensão em alguns anos. Superficialidade, falta de vínculo:
A gente não sabe exatamente como vai ser depois que o dinheiro do fomento acabar né? A companhia começou em março e vai até o final de novembro, justamente no período do Fomento e o orçamento está fechado pra em novembro a gente não ter dinheiro mais nenhum. Todos eles tem outro trabalhos, estão em quatro, cinco coisas ao mesmo tempo, eu acho isso bom por um lado porque eu não sou responsável por eles, responsável no sentido financeiro, no sentido emocional, eu sou parcialmente responsável, caso esse processo for uma porcaria a vida deles vai virar um inferno porque se você está em três processos e um é u ma porcaria a sua vida vira um inferno do mesmo jeito, então eu tomo esse cuidado pra esse processo não ser um percurso chato.

A diferença de comprometimento “antes e depois dos editais” é sentido pelos bailarinos da geração de “trinta e poucos”. Antes dos editais, cada um se virava como podia, tentava achar “seus buraquinhos”. Entretanto, o compromisso também mudou: antes, pessoas associavam-se apenas por “muita afinidade”.
[...] não se articulava enquanto classe, mas ao mesmo tempo cada um ia descobrindo uns buraquinhos para ir fazendo, né ? E aí também suscita outras conversas, também... O compromisso eu acho que também muda, um pouco, às vezes, não sempre, mas pelo o que eu vejo e escuto de como as pessoas se associavam em núcleos de trabalho, era por muita afinidade porque não tem nada, não tem nada.

2.7.2 Atrás da “cortina libertária” da flexibilização
Em nossa era, sob a cortina da liberdade do trabalho flexível, uma nova forma de poder e controle, moldado – segundo Sennett - por três elementos: “reinvenção descontínua das instituições, especialização flexível de produção e concentração de poder sem centralização” (Sennett, 1996, p.54). O primeiro relaciona-se com o “exigido desejo de mudança” nesses tempos de flexibilidade extrema, que acarreta rompimentos extremados e irreversíveis; “o presente se torna descontínuo com o passado”, num sistema fragmentado.
A instabilidade é inaugurada na esfera do consumo: a demanda é cada vez mais volátil. Inovação é uma palavra chave para a concorrência pela preferência do consumidor, daí a necessidade da “especialização flexível”, em que “as mutantes demandas do mundo externo determinem a estrutura interna das instituições” (Sennett, 1996, p.60). Do ponto de vista ético e político, que versará sobre as relações entre mercado e estado, uma dúvida fundamental: “haverá limites para onde as pessoas são obrigadas a dobrar-se?” (Sennett, 1996, p.61).
Os regimes flexíveis têm uma terceira característica: “concentração de poder sem centralização”. O controle é exercido estabelecendo-se metas quase inexeqüíveis, mas dando-se liberdade que cada grupo formule suas estratégias. O controle deixa de ser exercido como uma pirâmide, mas sim em rede, como já bem observara Foucault para a estrutura geral da sociedade.
O homem de sucesso na era da flexibilidade tem também “caráter flexível”: não se apega ao longo prazo (ou ao seu passado), tem grande “capacidade de largar, embora não de dar” e tolera a fragmentação. São traços de caráter que geram espontaneidade e capacidade de inovação nos bem-sucedidos. Todavia, salientará Sennett, “esses mesmos traços [...] se tornam bem mais auto-destrutivos para os que trabalham mais embaixo no regime” (Sennett, 1996, p.73).
Para sobreviver, os bailarinos dependeram de criatividade extrema e capacidade de adaptação. Por outro lado, rendidos à instabilidade do curto prazo. Repito a pergunta de Sennett citada acima: haverá limites para onde as pessoas são obrigadas a dobrar-se? Será um jogo de azar? Sobreviver já é uma vitória a ser reconhecida. E passa a ser entendida com uma característica necessária ao “ser artista”: “quem é artista, é assim”...
É assim com isso, com esses editais com o que esta acontecendo, é um pouco isso assim ... É porque assim sustentar eu acho que ainda não, porque quando fala de sustentar, eu imagino uma coisa assim, né? A longo prazo, freqüente que de suporte, não seja assim... (...) Pontual, que já melhorou muito, né? Antes não era nada, agora tem um tantinho, mas é sempre por um ano ou menos dependendo do seu projeto e dai , cê não sabe. Por exemplo, agora a gente tá com o Fomento, acaba em novembro acho, ai eu não sei o quê que vai acontecer, né? ... Então a sensação que da é que cê ta fazendo um pouquinho assim, e ai vai, vai... Não sei o que vai acontecer, ai você pode dar sorte de achar uma coisa que emende mais um pouquinho, e assim vai indo de..., dando sorte. Acho que tem a ver com sorte , ou não sei, ou interrompe até você poder... Então eu acho que isso não é bem um sustentar, né? (...)

o fato da pessoa ter chegado ali eu já acho que só isso já merece todo o nosso mérito, porque são poucas que conseguem batalhar, que é isso que eu falei, né ? Que deixam de lamentar, porque muitas vezes aquelas falam: aí eu não cheguei lá, ficaram na lamentação e a pessoa deixou de lamentar e foi trabalhar e ela está ali, né?

“quem é artista é assim”. [...] se você é artista - e isso vai além dessas condições de tem dinheiro pra pagar aluguel ou se você tá contente com aquela sua criação ou se você vai ter que se mudar de situação pra você continuar fazendo a sua arte.


Sobreviver torna-se tarefa individual, segredo do sucesso, que depende de cada artista: adaptar, tentar ir atrás e mudar.
... porque é realmente difícil não tem como é mentira não falar que não é realmente difícil. Mas o que eu agora estou tentando mudar, aí é pessoal, isso aí também vai do meu trabalho... O ano passado - falei pra você - entrei num trabalho de solo, então vai disso também. O que eu consegui vivenciar com esse trabalho foi uma experiência muito legal nesse sentido, que tem uma coisa de você ir atrás e que vai, é desse jeito. Então como é que eu vou me adaptar e tentar ir atrás e mudar e conseguir os meios, mesmo sem dinheiro, porque as coisas acontecem.

Uma artista entrevistada conta que, na Europa, há “dois tipo de bailarinos”: os de companhia, com emprego fixo e “os de projeto”, que ficam em um grupo por alguns meses e depois, ou entram em outro projeto ou vivem da seguridade social. Talvez seja uma estratégia de sobrevivência em tempos de extrema flexibilidade, encontrando-se brechas “por dentro”: nesses intervalos, podem ter tempo de fazer seus próprios projetos. Contudo, não são todos que se sentem confortáveis nessa situação: teme-se ser parasita do Estado, “virar funcionário público”, o que seria um grande fracasso e demérito. Vivemos como marginalizados, mas queremos as mesmas medidas do “homem de sucesso” do capitalismo atual.

Eu acho que tem um lado interessante concurso sabia? Por exemplo pelo tempo que eu morei na Europa e esses contatos que eu tenho na Europa, tem esses dois tipos de bailarino, bailarino de companhia e bailarino de projeto. E bailarino de projeto, ele fica quatro meses num projeto, quatro meses no outro às vezes levando dois projetos ao mesmo tempo. Geralmente o que acontece na Inglaterra, por exemplo, é que o cara fica quatro ou cinco meses num único projeto, e ganha suficiente e depois ele fica desempregado quatro ou cinco meses, mas sem o dinheiro do estado que banca, tipo assim, seguro social. Então o seguro social na França e na Inglaterra é um salário de artista, tem um monte de bailarino que vive assim. Então, por um lado, é bom, por outro lado, é uma porcaria porque, o cara é um pontinho desempregado, daí emendando um projeto no outro que também não é uma maravilha. E eu não sei se é... porque a gente também não pode virar todo mundo funcionário público de uma hora para outra e quando o projeto termina se você depende exclusivamente desse projeto pra viver você vai ficar sem, né, sem ter como pagar as contas.
2.7.3 Ética do trabalho
Na experiência contemporânea do trabalho, o tempo fora partido: segundo Sennett (1996), as pessoas “sentem falta de relações humanas constantes e objetivos duráveis”. Tudo é rápido, arriscado e fugaz. Consequentemente, para o autor, “a ética do trabalho é a arena em que mais se contesta hoje a profundidade da experiência” (Sennett, 1996, p.117). Se nas gerações passadas, com instituições “permanentes”, a ética no trabalho afirmava a autodisciplina e satisfação adiada, hoje, num cenário instável, deixa de ter valor “adiar”.
Nos bailarinos, há um sentimento nostálgico em relação a essa fibra, essa necessidade de fazer acima de todas as coisas, sempre “fazendo, de alguma maneira, fazendo”, característica da geração e da forma-de-vida pré-editais.
E todo mundo tinha que ter outro trabalho, ou alguma coisa, ou você dava aula o dia inteiro, ou você ficava dando cheques especial todo mês, ou sei lá o que e ia ensaiar de noite, de madrugada, essas coisas... mas de alguma maneira ia fazendo, não sei...

Para Sennett, poderia ser uma conquista libertar-se da “autonegação” que, muitas vezes, significava a autodisciplina e o adiamento da satisfação. É o “homem moderno motivado” descoberto por Weber, cujo valor moral e caráter são provados pelo trabalho. Para o homem motivado, a riqueza é um sinal de virtude. Diferentemente da “culpa católica” pelos vícios da riqueza, o homem motivado acumula e sua vida é “uma interminável busca de reconhecimentos de outro e auto-estima”[...]: [um homem] oprimido pela importância que tem de atribuir ao trabalho” (Sennett, 1996, p.126).
Por um lado, Sennett considera que o enfraquecimento dessa ética do homem motivado seria um ganho para a civilização. Entretanto, ressalta o autor, a alternativa moderna não tem sido um remédio: a moderna ética concentra-se no trabalho em equipe e na adaptabilidade às circunstâncias que ela ele requer. Sennett é radical em relação a essa prática: para ele, “o trabalho em equipe é a prática de grupo da superficialidade degradante” (Sennett, 1996, p.118), que logra transformar as relações humanas em farsa. Para durar, vive-se problemas e entraves superficialmente, sem que abale a “ordem e coesão do grupo”. Nada é realmente aprofundado. Assim como nas instituições em que o poder fora concentrado, mas não centralizado, nas equipes desaparece a figura da autoridade: o poderoso apenas “media, facilita e capacita os outros”, o que desorienta os empregados, que ainda sentem-se subjugados, mas sem saber por quem ou o quê. O único foco é o presente e quaisquer mudanças são legitimadas por uma necessidade presente, sem que haja um responsável por ela.
Um novo tipo de caráter é então gerado: o homem motivado é substituído pelo homem irônico, que não é “exatamente capaz de se levar a sério, porque sempre sabe que o termo que se descreve está sujeito a mudanças”, ou seja, uma visão irônica de si.
Mas será justo pedir que se trabalhe sem remuneração? Talvez a diferença seja “a força motriz dos trabalhos”: o que se sinta autoral, que fale de algo muito valioso, sim, possa ser feito sem remuneração. Mas quando são grupos reunidos para e pela a vontade de um terceiro: bailarinos motivados?
É eu acho assim como na verdade nenhuma das meninas é financeiramente, exclusivamente dependente da companhia o que vai acabar acontecendo é o que eu vejo acontecer com todo mundo, que as pessoas que juntam pra reestrear, eu sei que o Boreli consegue manter a companhia ensaiando mesmo sem dinheiro, eu não sei nem se eu tenho cara de pau pra pedir uma coisa dessas, não tenho... enfim, e aí pode ser que elas engrenem em outros trabalhos e quando a gente precisar voltar talvez elas não possam, em termos de cruzamento de horários e tal, não que isso, não dá pra prever.



3 Política cultural, programas e mercado
O Estado é o principal financiador da cultura; entretanto, prescinde-se de uma política cultural ampla, que leve em conta pormenores e particularidades de cada uma das áreas beneficiadas. Não há como falar na relação que se estabelece entre o trabalho artístico, sua viabilização e inserção no mercado da arte sem analisarmos a estrutura das políticas de fomento à cultura em seus vários braços (e distorções), principalmente as leis de incentivo público-privados e os editais.
O capítulo está dividido em cinco partes. Começamos (3.1) pelo principal instrumento de política cultural: as leis de incentivo público-privado e, consequentemente, o Estado como principal financiador, mas não principal “decisor”. Apesar de principal instrumento de política pública, os editais são perenes, imprevisíveis: não há como sustentar trabalho continuo contando-se com editais (3.2). Apesar de intermitentes, são uma conquista recente, com aspectos positivos e negativos (item 3.4) fruto de mobilização da classe (assunto que abordamos no item 3.3). Para terminar, um aspecto fundamental para pensar-se a inserção: a falta de espaços para a circulação (3.5).

3.1 Relevância do Estado para o financiamento da cultura
Acaba de ser lançado (junho/2008) o Plano Nacional de Cultura, cuja idéia básica é ampliar os recursos para o setor cultural, bem como expandir a abrangência da Lei Rouanet (Lei no 8.813/91), além de cobrir todas as áreas culturais no país, incluindo a arqueologia. Associado ao plano, o governo defende a aprovação da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 150, que modifica o repasse de recursos federais para a cultura, que passaria de 0,6% para 2% o total de recursos que recebe atualmente.
Como já constatara Segnini (2007), o Estado é o principal financiador dessas atividades artísticas. Entretanto, na última década é cada vez maior a participação do capital privado. Esta última afirmação merece muita cautela e atenção: os investimentos privados têm crescido por meio de renuncia fiscal, principalmente via Lei Rouanet. Ou seja: dinheiro público aplicado de acordo com diretrizes e interesses privados!
E se esse tem sido o caminho da política cultural no Brasil na última década, os outros níveis de governo acompanham a tendência e tem suas próprias leis que regulamentam investimento em cultura privado por meio de renúncia fiscal. O Estado de São Paulo lançou em 2006 a “Lei do PAC”, para aplicação de recursos provenientes do tributo estadual (ICMS) e o município de São Paulo a lei de incentivo, para aplicação de recursos provenientes de tributos municipais (IPTU e ISS).
Helena Katz, pesquisadora da área de dança, resume em uma frase a complexidade dessa situação: “E a Petrobrás é o nosso Ministério da Cultura, porque tem a maior verba possível, então ela tem vários nichos. Porque tem muito dinheiro, aí dá para ter vários nichos”. Não porque a Petrobrás e todos os outros “investidores da cultura” tenham entendido seu papel social, mas sim porque é uma boa estratégia de marketing, que agrega às marcas e é muito barata. Usam o “dinheiro público com alta competência, de associar o seu nome somente a determinados produtos que o marketing dela explica que são os produtos desejáveis. Então são especialistas em executar projetos de marketing cultural”. E não é que sejam vilões: é um desvio de política pública. “Se o governo lhe dá de graça um dinheiro, vai usar, por que não?”. O Ministério da Cultura e as Secretarias Estaduais e Municipais outorgam às empresas o direito de distribuição dos recursos públicos da cultura. Ou seja, sem mudanças de base, a triplicação dos recursos para a cultura não nos conduzirá para fora do deserto, como bem ilustram os trechos das entrevistas a seguir:
[busca por outros caminhos como “lei de incentivo”] na verdade, apesar dos apoios da Funarte do Pac, o dinheiro do grupo não foi feito em... cada pessoa, todos, têm que trabalhar com outras coisas porque a grana... O Pac falando agora, nós somos seis ..... a gente consegue realizar o projeto, mas a gente não consegue se sustentar por ele com o salário para se sustentar em São Paulo cada um né, então a gente percebeu bom a gente tem que ir por outras vias também, identificar outras vias. E aí a lei de incentivo entrou com uma oportunidade de uma empresa específica né, que já havia um contato {...] as empresas estavam buscando grupos num perfil que elas acham interessantes para elas então tem esse lugar... Até você consegue aprovar o seu projeto no ministério, mas até você conseguir captar uma empresa que ache o seu trabalho interessante para ela. E até a gente se surpreendeu, porque a gente escreveu o projeto bem idealista assim. A gente fez um orçamento para um projeto de um ano, que visava fazer a pesquisa e realizar a circulação de um espetáculo né e aí quando a gente foi captar o dinheiro, a gente viu que não tinha perspectiva para a empresa não era interessante apoiar a pesquisa, ela apoiaria a circulação. Então tem esses contras né, que a gente tem que ir moldando o nosso projeto pra conseguir o apoio de uma empresa e como moldar também sem que o projeto perca sua natureza né, sua qualidade né.

Apesar desse cenário inóspito, Katz está animada com as mudanças prometidas pelo MinC para a Lei Rouanet: haverá, segundo ela, um “avanço substancial”. A Rouanet continuará existindo com essa mesma estrutura mercadológica (“publicidade com dinheiro público”) e será criado um outro mecanismo paralelo, que contemple os segmentos artísticos que , do ponto de vista de mercado, não são sustentáveis.
Eu estou muito confiante nessa promessa da Funarte e do Minc de criar essa outra coisa, que vai ficar ao lado da Rouanet, pra Rouanet ficar completamente mercadológica e, quem faz pesquisa de linguagem ter um outro abrigo. Acho que aí vai começar alguma coisa a se mexer de fato, porque não é possível falar em pesquisa de linguagem se você não mexe nessas duas pontas: produção de conhecimento na universidade, e produção de arte, produção e criação artística. (Helena Katz)

Ademais, se diz confiante com o fato de haver “muita gente jovem, dedicada, esclarecida, desenvolvendo projetos interessantes, artísticos e acadêmicos”. Jovens que começam a acordar para a necessidade de “pensar as políticas públicas para a dança, se especializar nisso”. Ou seja: a união da classe como única saída frente ao “cenário nefasto”:
Face a um cenário como esse, há muito o que esperar de 2008. Mas, de nada adiantará somente esperar, se a classe da dança não conseguir se organizar politicamente. Sem isso, sua força de reivindicação não poderá ser plenamente exercida, e a atual situação, que é a de fabricação contínua de projetos para atender a todos os editais, será mantida. Muitos parecem não perceber que se encontram mantidos em um mesmo campo de extermínio, do qual alguns são temporariamente retirados, ao serem selecionados por algum dos editais, para serem, em seguida lá devolvidos, retornando à situação anterior de instabilidade. Somente a discussão política poderá trazer a clareza de que eles permanecem imobilizados pela esperança que cada um tem de ser a próxima bola da vez. (Katz, 2007)

Na trilha de Katz que encara a atual realidade dos editais com um “campo de extermínio”, a observação de Maíra Spanghero sobre a realidade dos editais é absolutamente terrível para a construção de uma “classe profissional colaborativa”. Diz ela:
[...] edital é uma espécie capaz de provocar a felicidade em alguns poucos e a frustração em muitos tantos. Eu mesma já fui vítima várias vezes. Com isso, aprendi que são muitos participantes para uma verba insuficiente e que se trata, portanto, de uma concorrência, de uma competição. (SPANGHERO, 2007).

3.2 “Empurrãozinho”: política cultural?
[edital] dá uma ajuda, dá uma ajuda. Pode ajudar a viabilizar um pouquinho assim, empurrando um pouco (...), da uma empurradinha e vamos ver, da uma empurradinha e vamos ver. E agente... e tem um lado que da uma, uma, uma sobrecarregada, uma tensão, né? Você ta desenvolvendo uma coisa que você imagina que você vai continuar ou tentar, mas você sabe que logo no meio pode ser que tudo..., que pare. Ou que não ou que não seja possível, porque parar também... Agente sempre vai continuando de algum jeito, assim... Talvez você não tenha as condições e você tenha que descobrir como é que você vai fazer pra dali a pouco surgir uma outra chance de você poder continuar um pouquinho...

Segundo a professora e pesquisadora da dança Helena Katz, “a pesquisa em dança enfrenta a mesma situação que qualquer outra produção em dança [...]: nós não temos um programa de políticas públicas para dança que seja pensado como programa”. Para Katz, não há clareza do que seria “um fomento de áreas artísticas especificas, porque fomentar áreas artísticas implica em conhecer a especificidade de cada área artística”. Consequentemente, quando não se conhece essas especificidades, prescinde-se dos alicerces: “nós não temos essa arquitetura, nós temos só o outdoor, sem nada atrás, só o edital” (só os “empurrõezinhos”). Mais um ingrediente do bolo do “fazer política pública de outdoor”.
Se as diversas áreas culturais sofrem desse mal generalizado, a pesquisa em dança, que é, segundo Katz, “a mais recente a ser atendida em editais”, padece do mesmo mal: assim como “todo o resto da dança é atendida sem nenhuma especificidade”.
Um quadro complexo: políticas públicas de outdoor, falta de clareza das especificidades de cada área artística e dos diferentes “segmentos e práticas” internos às áreas. Em relação à pesquisa em dança, o quadro se complexifica: para Katz, se há falta de clareza no pode público, ela é compartilhada pelos artistas da área: “A pessoa não é mau caráter em dizer que está fazendo pesquisa e não está. A pessoa tem de fato a convicção que ela está fazendo uma pesquisa, justamente porque não tem uma conversa pública sobre o que é fazer pesquisa”, tema que recuperaremos no capítulo 5.

3.3 A esfera política: lamentar não, brigar sim.
O surgimento dos editais de fomento e apoio são acontecimentos políticos. Em alguns casos, conquistas da classe; em outro, conseqüências de “constelações políticas favoráveis”. Recentemente, dois acontecimentos na dança paulista ilustram essas realidades: o Programa de Fomento à Dança da cidade de São Paulo, em 2005 e a criação da São Paulo Companhia de Dança, em 2007.
O primeiro é tido como “a grande conquista da classe”, que talvez denote o surgimento de “uma classe política”. Nas palavras dos artistas:
Mudou totalmente, totalmente, não sei o que aconteceu, porque que de repente de cinco anos pra cá isso começou acontecer aqui em São Paulo né eu até acho que talvez por uma disputa política de PT, PSDB [...] eu tenho impressão que essa fatia política, esse patamar político começou a perceber que a classe artística é poderosa e pode mudar o rumo de muita coisa, é isso mas assim é muito importante, agora mas isso também é perigoso, é muito perigoso porque a gente pode cair numa cilada ...

[...] daí assim, foi de 2002 pra 2003 que teve, que começou a ter uma Mobilização da Dança [...] Em 2003 com o Mobilização Dança, tem o prêmio Estímulo [...] Então quando eu lembro que eles falaram isso pra Mobilização Dança quando eles foram lá falar com os vereadores meio tipo vocês não dão dinheiro pra dança não sei o que, eles pegaram e viraram mas “é a primeira vez que vocês vem pedir dinheiro aqui, nunca até então ninguém tinha vindo pedir” e funciona assim: é quem grita é quem leva.

Já o segundo, mostra que política é uma atividade diária e que a classe não é tão coesa e articulada: fruto de uma “constelação política favorável”, que, para a maior parte dos aqui entrevistados, denota a falta de articulação e pouco debate, em que parte da classe sentiu-se “deixada de fora dos trâmites do poder”, sem ter conseguido mobilizar-se e tornar o debate público. Não há um consenso a respeito da companhia estadual, mas todos entendem que seja um assunto polêmico que envolve a articulação e força política da classe.

Daí eu acho que a gente lida mais uma vez com a questão de que a nossa classe política tem uma grande defasagem de formação cultural eu acho. Então as decisões do que se fazer com o dinheiro ou ah o que vamos fazer com esse dinheiro são burocratas que são, são tecnocratas nem sei como é que é o termo que eles usam, mas assim a própria classe política, classe política não as pessoas que tão ali no poder...

Não, não conheço ninguém .mas me falaram que muita gente quando teve o lançamento da companhia lá no Espaço São Paulo [...] quando a festa de lançamento e tal muita gente da dança independente estava lá né entendeu? Porque fica essa coisa também sabe, de não se posiciona e tá lá e de repente quer ficar amigo também. De repente vai pintar um trabalho[...] eu sou contra isso.

A gente tem que lutar também nessa parte de dança independente pra todo mundo usar o dinheiro de forma mais inteligente e daí se posicionar mais.

3.3.1 O Mobilização Dança e o Fomento à Dança da cidade de São Paulo
É unânime entre os artistas entrevistados o reconhecimento do Programa de Fomento à Dança da cidade de São Paulo como a principal conquista política recente da classe. Opinião dos artistas, pesquisadores e reconhecido nos “autos da história oficial”. Sobre o surgimento da Lei Municipal no. 14.071 de 18/10/2005 que cria o programa, esclarece a Secretaria da Cultura em seu site: “o projeto nasceu da politização da dança em São Paulo. O maior agente da criação da lei foi o movimento Mobilização Dança, formado em outubro de 2002 com o intuito de discutir e propor projetos e programas públicos para a dança contemporânea”
Ainda segundo informação da Secretaria Municipal da Cultura uma parceria entre deputados estaduais, vereadores, o movimento Mobilização Dança e a Secretaria da Cultura definiram “as bases para o edital público e, em 2004, realizada a Mostra Contemporânea de Dança ao longo de três meses, com 35 grupos circulando por dez teatros municipais e sete CEUs, totalizando 280 apresentações” .
Em setembro de 2005, a Lei de Fomento à Dança foi aprovada por unanimidade. O primeiro edital do "Programa Municipal de Fomento à Dança" abriu inscrições em 17 de julho de 2006. Segundo o site do Programa, o objetivo do Fomento à Dança “é estimular a continuidade dos trabalhos na área e auxiliar na difusão da produção artística paulistana” . No primeiro (2006), com dotação de R$ 2 milhões, foram premiados 14 entre 32 inscritos. Nos dois seguintes, em 2007, foram repassados, respectivamente, R$ 2 milhões (março) e R$ 1,5 milhão (agosto). Na quarta edição (maio/2008), foram R$ 2 milhões.
3.3.1.1 Da lei ao edital: “o que você dá em contrapartida”?
Dez meses se passaram entre a aprovação da Lei e a abertura de inscrições ao primeiro edital. No início de 2006, Iracity Cardoso, bailarina e coreógrafa que havia regressado a poucos anos da Europa, foi convidada a assumir a Assessoria de Dança da Secretaria municipal da Cultura, uma das entrevistadas da presente pesquisa. Sua primeira tarefa era, segundo ela, “apagar o incêndio do pessoal da dança independente de São Paulo com a secretaria municipal de cultura, que estava uma briga infernal”.
Como primeiro passo, ela teria que compreender a Lei recentemente aprovada, que institua o Programa do Fomento à Dança. Para ela, não havia motivo para a segregação e só “um tipo de dança” ser contemplada:
Porque fui ler aquela lei... não entendia nada do que tava dito ali... por isso (...) termos né jurídicos, de tudo isso, que não é a minha praia. Já encrenquei com algumas coisas lá achei aquilo: “o que é isso, que história é essa de só dança contemporânea?”. Isso segrega, dança é dança. Por exemplo, o teatro não diz “teatro xis, teatro experimental, teatro de peso, teatro...” é teatro, é uma forma de arte. E dança, porque que tem essa coisa? Bom, enfim, já comecei a encrencar com umas coisas... (Iracity Cardoso).

Segundo Iracity, começaram, então, os encontros com o Mobilização Dança para a compreensão da Lei e das demandas do movimento para o edital, bem como uma discussão acerca dos recursos que seriam oferecidos no primeiro edital. Eles estavam “bravos”, diz Iracity.
[...] então eu tive o primeiro contato, eles estavam meio bravos e daí eu disse, “vamos acalmar e vamos....”. Claro, eu também acho que eles tem razão, é pouco dinheiro, tem que dar mais dinheiro então tem que batalhar para dar mais dinheiro e tem que fazer isso também [...] Então vamos agora falar das coisas que são práticas e dos deveres de cada um, porque também não adianta ficar só, eu quero, eu quero, eu quero, o que você dá em contrapartida? como é que são? Porque hoje em dia não tem mais essa: é preciso se organizar de outra maneira né, a sociedade mudou nós estamos no ano 2000, enfim... (Iracity Cardoso).

O primeiro edital saiu “atrasado, e tal, mas foi”. Iracity diz que achou “que a gente tinha realmente que privilegiar os trabalhos de grupo. Acho que você não faz nenhum trabalho de criação em nada sem pesquisa [...]”. A partir do primeiro edital, usou-se as experiências anteriores, aprendizados, conversas com o Mobilização e com a classe, bem como orientações das Comissões julgadoras para se rever os editais. Aprendizados para a classe e para as ações de fomento à dança. Afinal, “quando o Fomento surgiu, foi uma coisa inédita, não existe em nenhum outro estado ou cidade do Brasil que tenha um programa assim para a dança”.

O segundo edital já a partir sempre de conversa com as pessoas né, do Mobilização e outras pessoas, fomos modificando esse edital, fomos modificando e adaptando às circunstâncias, aos pedidos, inclusive porque participar de um edital de fomento, não só a criação como a participação foi um aprendizado pra todos porque o que é escrever um projeto? (Iracity Cardoso).


3.3.1.2 A Galeria Olido
Uma segunda etapa desse processo do Programa de Fomento à Dança foi a revitalização da Galeria Olido, que tendo sido construída como um espaço para a dança numa gestão anterior, havia ficado fechado e sem programação durante todo o ano de 2005. Na avaliação de Iracity, a única forma de reflorescer a Galeria seria usá-la como “sede do Fomento”: sala de ensaio para os grupos fomentados e a sala Paissandu como palco para estréias e temporadas dos trabalhos apoiados:
Gente, a galeria, ela só vai adquirir vida nos centros de dança no momento em que a gente der os prêmios do fomento, porque está intimamente ligada com o fomento.O fomento é municipal, a galeria Olido é municipal então é um espaço que tem a sala de ensaios pros grupos e que tem o palco para se exibir de graça. Então, além do dinheiro que você dá que é aprovado do projeto, você ainda tem o espaço para ensaiar e o espaço para se apresentar, então aí as coisas vão florescer [...] Então foi a partir disso que a coisa começou a florescer, e daí chegou em outubro fizemos a Mostra do Fomento e as coisas começaram, teve mais um, mais dois e o trabalho foi se modificando. (Iracity Cardoso).

Originalmente, eram quatro salas de ensaio no primeiro andar da Galeria. Uma das salas foi convertida em “Centro de documentação e referência”, para que se tenha registro da história do Programa.
Nós temos três salas, eu já separei uma sala para fazer aquele centro de documentação e referência pra já começar a documentar desde o início os projetos do fomento, os vídeos, os relatórios, que é história, é história a gente tem que documentar. E se você não faz logo no início depois ah daí se acaba para fazer, para pegar de 10 anos atrás e não sei o que então enfim. [...] você tem que, quer dizer o programa ele tem que estar todo documentado, todo organizado (Iracity Cardoso).

Segundo Iracity, tinha-se a expectativa de que o Programa poderia ser registrado pelos veículos de mídia, por crítica especializada. Entretanto, o Programa e a Mostra não tiveram mídia. Buscou-se uma solução alternativa:
[...] não nós tivemos crítica, nós não tivemos artigo no jornal, então eu fui obrigada a chamar pelo menos uma pesquisadora e um jornalista para escreverem um pouco sobre o que foi esse trabalho, porque senão a gente não tinha registro, o olhar da pessoa de fora, não é? [...]se eu tivesse, nós tivéssemos tido, durante o processo todo ou pelo menos durante a Mostra alguém que escrevesse falando da Mostra, “aconteceu isso, isso, isso, fulano de tal que deu tanto tananana, o resultado foi esse ou o resultado foi aquele” (Iracity Cardoso).

3.3.1.3 Avaliando-se o Fomento
Em artigo no O Estado de São Pulo, a professora e pesquisadora da dança Helena Katz considera a lei do Fomento “indispensável, uma conquista histórica”. Entretanto, após três ano de programa, mereceria reflexão. Os problemas, para Katz, começam pela reunião “inespecífica de produção e difusão”, sem que se defina realmente “o que se entende por ‘produção artística paulistana’. Ademais, necessidades distintas estão sendo misturadas, “sem nichos específicos que abriguem necessidades distintas”: concorrem paritariamente, por exemplo, “tanto grupos jovens quanto os de longa carreira povoada por trabalhos descontínuos”. (Katz, 2007b) .
Na opinião de Katz (2007b), quatro tópicos não poderiam ser esquecidos nos debates que norteariam a revisão do edital após a terceira edição:
1. “a necessidade de definir o conceito de "núcleo artístico" que norteia os editais” (aspecto que analisamos no capítulo 5);
2. a urgência em incorporar instrumentos oficiais de acompanhamento e avaliação dos selecionados;
3. a rediscussão do conceito de "contrapartida social" que tem obrigado artistas a se travestirem de educadores do terceiro setor;
4. a questão da gratuidade dos espetáculos.

Entretanto, mais importante do que tais revisões, seria, na opinião de Katz, a discussão de “entendimentos fundamentais” de princípios e alicerces: “o que se entende por fomento, o que deve ser fomentado, como isso deve acontecer, por quanto tempo e com quais formas de avaliação”. O edital, por sua vez, seria a conseqüência legal desses alinhamentos e predefinições”.
Além dos pontos apontados por Katz, outros dois aspectos merecem atenção: o prazo máximo de um ano e os cortes que têm sido realizados nos orçamentos enviados com os projetos.
E..., e..., eu acho que nesse último edital já tiveram algumas pequenas mudanças e tal, mas eu acho que ainda precisa... Ter uma coisa de um ano, um projeto de um ano no máximo, eu acho pouco tempo. Ou como é que isso se estende? Mas também não fique fechado, porque também não tem tanta verba para tanta gente, então ai pra quem pega vai ficar com aquilo um tempo, e quem ta fora, entendeu, não consegue. Então, assim, um monte de coisa assim pra descobrir como é que faz, um pouco assim... Então é..acho que sustentar não, eu acho que da umas forças.

E tem uma outra coisa ainda que eu acho, que é o pior problema pra bancar uma pesquisa, que é esse julgamento de corte e de continuidade. Eu acho que o prêmio do Fomento tinha que ser de no mínimo dois anos. Por que, que nem agora... A gente não tem grana pra pagar sala de ensaio, a gente não tem sala de ensaio, entendeu?

Mesmo de quanto tempo você precisa, né? Eu lembro da meninas lá da Porque no hacemos cine? cortaram na metade a verba delas. [...] E como você vai fazer uma coisa que você se propôs? Você ganha metade e aí você tem que fazer... s

O Fomento é o único dos editais que estabelece um valor máximo e que cada proponente pode dimensionar seu projeto e pedir o que for conveniente. Nos últimos editais, projetos têm sido aprovados, mas com cortes que variam entre 20% até mais de 50 %. Muitos problemas são gerados: primeiro, os autores dos projetos aprovados têm que “se virar” com o recurso que lhes é oferecido. Na maior parte das vezes, acaba-se trabalhando muito recebendo-se salários ridículos. Tal prática gera uma bola de neve infinita: sabendo-se que o corte será inevitável, incha-se orçamentos, na esperança de se poder cortar, sem se prejudicar o projeto.

Mas aí teve um corte de verba muito grande. É, acho que quase todos os projetos, mas o nosso era de trinta por cento, que é bastante, e eu tinha feito um orçamento bem enxuto, assim, que a gente não tinha, sabe, engordado nada. Aí eu fui cortando tudo pra não chegar na gente, né, elenco, e justifiquei assim, porque...o projeto era, a proposta era muito a ver com o processo e... a gente tinha também um processo de colaborar entre a gente, enquanto grupo. E aí eu falei, aí eu fui tirando, assim, produtor, zero, colocava de volta assim, é.. aluguel de teatro, zero, ... e ainda chegou na gente, um pouco.

Agora com companhia que é um dinheiro maior, que é R$ 150.000,00 que é o Fomento. E o projeto original era de 215 mil aí eles me deram 150, foi a primeira coisa que eu cortei foi ter um espaço, né ter, alugar um espaço seria de repente uma possibilidade de continuar e tal. É porque o corte que eles fizeram, por exemplo, na minha verba que era de 215 pra 150 foi o que abaixou no salário, que foi cortar em mil reais, 780 reais por mês o salário de cada pessoa.

Frente a essa realidade, cremos que duas alternativas deveriam ser avaliadas: a determinação, em edital, de um percentual máximo de corte para a aprovação de um projeto. Por exemplo, determina-se que o máximo é 20%. Assim, qualquer projeto que se acreditar ser válido um corte superior ao teto estabelecido estaria desclassificado por “orçamento não condizente com a proposta do projeto”. Os orçamentos teriam que ser mais justificados, mas cortes que tornam projetos inexeqüíveis e a “bola de neve” do inchaço dos orçamentos deixaria de existir.
Outra possibilidade é a adoção de valores fixos, assim como acontece no PAC e no Funarte Klauss Vianna. Mais engessado, com certeza, mas cortes deixariam de ser um problema de antemão. Com a existência de histórico de quatro edições e cerca de quarenta projetos inscritos por edição, poder-se-ia levantar valores médios e estabelecer-se um “menu de prêmios” e a quantidade por “valor”.

3.3.2 A São Paulo Companhia de Dança
3.3.2.1 A Cia. de Dança de São Paulo por Iracity Cardoso
Para Iracity Cardoso, diretora artística São Paulo Companhia de Dança, a criação da companhia tem a ver com uma “constelação política”, similar ao momento da criação do Balé da Cidade, na dedada de 70. E se o modelo da companhia é tradicional, é por uma necessidade, por faltarem referências à dança paulista, que estaria “muito perdida”.
Existem momentos, existem constelações que acontecem e quando essas constelações acontecem é preciso estar muito alerta e pegar e fazer. Nós tivemos uma constelação na década de 70 que foi, o secretário de cultura que chamava-se Sábato Magaldi, com o diretor do teatro municipal que chamava-se Minagibi, com o prefeito de São Paulo que chamava-se Faria Lima. Então esta constelação política deu, da época da ditadura brava, brava, deu oportunidade de pegar o Balé da cidade de São Paulo, o corpo de baile municipal, que era um grupo de bailarino que foram criados para fazer ópera e transformar aquilo numa companhia de dança profissional em dança moderna com uma pesquisa, com o “blalalalá”, com salários melhores, com uma sede (..,) tá lá até hoje, um prédio pra pessoa, tem uma sala de ensaio, camarim, fazer a sua produção, etc., etc. Então foi uma constelação e, por mais que os governos tenham mudado, teve seus momentos top e teve seus momentos de decadência, teve os momentos que o Maluf mandou todo mundo embora e depois voltou todo mundo. Tem bailarino lá com contrato precário há 15 anos, 15 anos de contrato de prestação de serviço - 96% da companhia assim, você acha justo? [...] Eu trabalho pela dança e sempre trabalhei pela dança, eu não trabalho em outra coisa, e a oportunidade de aparecer o ouro eu vou criar, e não vou dizer: “ah não”, não sou piegas nem... ah não coitadinha de mim, cem euros, vou... Não, vou sim, porque a quantidade de profissionais que eu estou contratando, entendeu, e que tou dando um bom salário, uma boa possibilidade de trabalhar, eu acho isso maravilhoso, não só bailarinos como professores, coreógrafos, produtores, gente pra fazer a música... Abre um mercado de trabalho enorme, sem contar que vai-se poder criar obras que o público paulista não tem oportunidade de ver, ao vivo e a cores né? Pro grande público... vai ter oportunidade de fazer também as obras experimentais. [...]Eu agora estou montando uma companhia de estrutura tradicional, eu acho que está faltando em São Paulo, tradicional o pessoal está muito perdido fazendo qualquer coisa por aí, achando que tá... não tá fazendo nada. (Iracity Cardoso)

Seu desafio tem sido construir a companhia. Para ela, a tarefa é construir bem: “com uma sede, direito, com os contratos todos CLT. Eu acho que o artista tem que ser respeitado como trabalhador, eu acho que a gente tem que puxar esse lado né, de que paga os seus impostos e tem o décimo terceiro salário”.
Tá, companhia sim, contrato bailarino sim, tem que ter carteira assinada, décimo terceiro, fundo de garantia, isto custa caro, custa caríssimo... Então é só o governo que pode pagar isso, porque ele paga e depois tira impostos, mas é o governo que tem que pagar pra você poder fazer, tem que ter incentivo pra você poder fazer. 70% do nosso orçamento - não, não chega a 70, acho que 60% - é folha de pagamento porque é da folha de pagamento que todos os encargos trabalhistas. [...] Nós vamos chegar a 70 [funcionários] mais ou menos. Não estrutura, é companhia de dança não é, é uma estrutura que nem a OSESP teve a sua estrutura....: É uma companhia que tem pessoas para cada setor, pra desenvolver uma série... vai se construir um teatro e a gente precisa começar a fazer a estrutura já. Tem uma estrutura profissional ... agora, o fato de que foi aprovado esse dinheiro e que os outros tenham um outro tipo de dinheiro, agora isso é a classe que tem que trabalhar por, é a classe que tem que trabalhar por. (Iracity Cardoso)

Outro aspecto é a criação de mercado de trabalho para bailarinos que têm tido que sair do pais para dançar “por falta de “mercado de trabalho para o quê eles querem fazer”. Segundo Cardoso, há falta de opção para jovens bailarinos, já que há poucas companhias estáveis no Brasil - Balé da Cidade, Cisne Negro, Grupo Corpo, Salvador e Curitiba – e todas sofrem com baixos orçamentos. As únicas alternativas para esses bailarinos seriam competir em Festivais ou ir para companhias no exterior.
3.3.2.2 A São Paulo Companhia de Dança de em debate
Para os artistas, independentemente da opinião que tenham sobre a companhia, um aspecto ficou evidente com a constituição dela nos moldes em que foi feita: desmistifica-se a idéia de que “não há dinheiro para a cultura”. Alguns mais revoltados com o fato, outros, “pagando para ver: acreditando que se ela der certo, todo mundo vai ganhar”.
Eu acho que entra uma coisa que dá pra desmistificar que é o seguinte: não tem dinheiro pra dança então tem dinheiro, se apareceu dinheiro então é porque tem dinheiro né?

Eu já ouvi de tudo né sobre A Dança Companhia, [...] a gente sempre pensa que o outro tá ganhando dinheiro e a gente não tá, eu acho que essa é uma questão que permeia a criação dessas questões . Mas tem um lado que você pode questionar a cara dela e tudo, mas eu acredito se ela der certo todo mundo vai ganhar.

Olha eu não tenho essa postura que as pessoas independentes têm de rechaçar a Companhia, eu não tenho, eu estou esperando pra ver tipo sabe eu estou dando uma chance assim, eu quero dar uma olhada, tem coisas que eu acho esquisitas, né, aquela carta do secretário eu achei um pouco mal assim ah do Sayad, demonstra que ele tem uma vontade ideológica por trás dessa companhia [...] então em termos de políticas públicas o meu medo era secar o dinheiro pra dança independente e ficar só na companhia ao mesmo tempo são duas instâncias diferentes, quem dá dinheiro mesmo pra dança independente é a cidade, o fomento da cidade, e a companhia e do estado.

Ah... eu acho um absurdo, essa companhia; acho o maior absurdo. Achei um absurdo também a coisa vir da Iracity, que tava ali, tinha toda uma história; achei um absurdo ninguém saber; achei um absurdo fazerem teste em outro lugar, ir pra Buenos Aires fazer esse negócio de São Paulo; achei um absurdo a grana... Achei um absurdo essa comparação, acho que foi com a OSESP, não sei quem foi... Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, pra que que é isso,né? E tem um monte de coisa acontecendo, né? E coisa boa... Não sei... Acho que é muita grana, muita grana, concentrada pra um grupo só.

Ao mesmo tempo, porque se constrói toda uma estrutura nova, com orçamento de 13 milhões e só se destina 10% disso para o resto da classe, por meio de editais? “E os outros todos?”. Um “modelo predador”.
E o que me incomoda é o que eu tô pensando agora nesse momento que é essa questão dessa injeção de dinheiro que vai até criar uma nova coisa, um novo edifício e todos os equipamentos que já existem e que poderia... Então é uma coisa que pra mim fica assim: o problema não é que criou uma companhia estatal, estado lá de corpo e estado, o problema não é esse. O problema é e as outras coisas que já estão né a coisa da diversidade né então se tem grana pra subir ali, e os outros todos ?

Tipo 1 milhão e pouco e a companhia tem um orçamento de 13 milhões e pouco, é desproporcional, mas eu não acho que a gente tem que lutar pra companhia não existir, a gente tem que lutar pra ter mais dinheiro e ao mesmo tempo eu também sei.

Não existiu nunca esse dinheiro para a dança. Não é curioso, aí tem 13 milhões para uma companhia só. Mas esse dinheiro não foi capaz de fomentar a excelência antes, ele não existia. É uma tristeza. Tenho mesmo tristeza, são anos para a falência desse modelo, anos, anos. E é um modelo predador, porque na medida em que 13 milhões são destinados para uma companhia, e 1,3 para toda a dança do Estado, não é competitivo. Então é predador. Não tem graça, mas continuaremos, todos, sem desanimar.

Quem na dança independente ousou – sim, seria um ato de ousadia – imaginar um salário de 4 mil reais por mês, regime CLT ?
De dizer se é ruim ou se é bom, eu sinceramente eu achei, vou falar uma coisa que eu acho legal, mas é ridículo, é exatamente por causa da nossa miséria, uma coisa que eu achei legal dos bailarinos serem funcionários e serem funcionários públicos bailarinos e ter um salário bom.

[...] eles são jovens né, pessoas bem jovens né, não é 22 você vai lá com salário de 4000,00(...)

João Sayad, Secretário Municipal da Cultura, justificou a criação da São Paulo Companhia de Dança, entre outros aspectos, pela necessidade de infra-estrutura adequada e de excelência nessa arte. Nas palavras do Secretário-economista ao ser indagado porque o montante de recursos não fora aplicado nas iniciativas já existentes: “o que você preferiria: salvar a Varig ou começar uma Gol?”(Katz, 2007c). Talvez com a crise mundial no setor aéreo, essa seja a melhor saída para empresas de transporte aéreo – o secretário é economista, professor Titular da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo. Mas será a melhor saída para a construção de uma política pública de fomento a uma área da cultura?
[...] quando ele fala que não existe criação em dança com excelência, como ele falou no texto, não concordo com ele, eu acho que tem criação de dança de excelência aqui, mas quando ele cria uma companhia de dança do estado para justificar essa falta de excelência, será que é um caminho né? será que não tem que se pensar mais embaixo né, na formação, isso dessas referências mesmo de corpo.

A impressão da classe é que há uma ignorância no executivo em relação às demandas e necessidades da classe. “Por que a classe artística não foi consultada?”, perguntam-se os artistas. A criação da companhia é descrita com um ato de “coronelismo”, pouco democrático, de cima para baixo.
E que os caras na secretaria são completamente ignorantes em relação à cultura e as necessidades [...] então a nossa, é a mesma história por a nossa ignorância de como funciona os trâmites na política o uso de verba, as verbas vão embora, vão pra outro lugar [...]

Eu acho um absurdo, um absurdo isso, terminantemente contra assim um ato de coronel sabe não cabe e enfim um verdadeiro absurdo, eu não sou contra A Companhia.[...] e porque que ele não consultou a classe artística?

É, então... Isso que é... Não é democrático. É o que? Isso surgiu de uma mobilização da classe? Não surgiu... é uma coisa muito... ah, é muito “quero ser europeu”, sabe? Por que eu acho que vêm umas propostas de cima, essas coisas de visibilidade.


Helena Katz, pesquisadora da área, concorda com os artistas: “é a estatização de um modelo, isso é muito antigo, isso é muito antigo [...] o Estado assume um modelo de excelência para a dança, isso teve nome ao longo da história: stalinismo”. O que é necessário para estimular a dança em São Paulo é “uma conversa antes”. A cidade de São Paulo já tem uma companhia municipal; será que ela precisa de uma companhia estadual? Na opinião de Katz, não. Como São Paulo é um estado muito grande e diverso, teria que ser feito um levantamento das necessidades específicas de cada região e não importar um modelo que vem da OSESP e que, segundo Katz, têm causado muitos problemas para a música. Ou seja, discute-se “o como fazer política pública”: outdoor ou arquitetura?
Talvez o modelo para São Paulo, São Paulo é um estado muito grande, talvez nesse momento, olhar para o estado da arte da produção da dança em São Paulo, que é vinculada a esses festivais. O que seria necessário para fazer avançar? Criar uma companhia que vai ser modelar de alguma coisa ou fomentar a diversidade regional em São Paulo. A região de Botucatu, o que precisa para essa região? Porque é diferente do que precisa na região de Araraquara, que é diferente do que precisa em Santos, e por aí vai, o que o litoral precisa do que precisa Campos do Jordão. Ou seja, olhar para o Estado, para mim isso que seria política pública. Então tem problema sim que a gente tenha, assim, como tem problema com a Osesp. A Osesp é um enorme problema para a produção de outras orquestras. Então eu tenho a impressão que estamos importando os problemas que a Osesp trouxe para a música, para os músicos de São Paulo. [...] Se você está numa Secretaria do Estado, precisa pensar como fomenta dança no Estado, antes de chegar nessa questão dos recursos que isso é a pontinha do iceberg, mas o que interessa é a base desse iceberg, que está furada. (Helena Katz)

Na opinião de Katz, os enganos não param aí. Pelo modelo de excelência do secretário, uma companhia excelente custa 13 milhões de reais por ano. Com 1,4 milhões para toda uma classe por ano, como que poderíamos ter companhias excelentes antes? E, ainda mais sério pensando-se me política pública: será que criar uma companhia excelente desenvolve a dança do Estado?
[...] segundo o secretário declarou, ele quer uma companhia de excelência porque as companhias são ruins. Então ele tem um modelo da excelência. Se ele tem o modelo da excelência, e sabe que ele custa 13 milhões, ele precisaria dar 13 milhões para cada uma das companhias existentes, que elas seriam excelentes [...] Não tem quem não fique excelente, porque você contrata os melhores profissionais em todos os quesitos. Isso desenvolve a dança? Não sei, mas que elas ficam excelentes ficam. [...] você não volta no tempo, a não ser como farsa, a história não se repete, a não ser como farsa. É uma farsa. (Helena Katz)

3.4 Avaliando-se editais
Nesta sessão, compilamos pontos positivos (4.4.2) e negativos (4.4.3); boas e más experiências levantados nas entrevistas em relação aos editais culturais existentes. Podem ser encarados como avaliação dos programas existentes e usados como inspiração para políticas publicas ou programas de fomento futuros.
Para introduzir o debate, na primeira parte (4.4.1), uma questão polêmica: o papel dos curadores ou selecionadores. Será que essas pessoas têm conhecimento suficiente daquilo que estão avaliando? Os formatos de comissão de avaliação/curadoria são vários, mas as conseqüências e implicações dos formatos não têm sido discutidos com a atenção que mereceria.

3.4.1 Quem escolhe?
Um aspecto a ser salientado é o papel do curador, do membro da comissão de avaliação ou daquele que formula políticas públicas. “As pessoas que tão decidindo como apoiar e o que apoiar elas tem que estar diretamente ligadas com o assunto”, afirma um entrevistado. Mesmo no caso das comissões de avaliação formadas majoritariamente por artistas, como na última edição do Fomento, será que há uma “unidade de pensamento de política pública”?
Em artigo que “resume as principais discussões” que permearam a edição 2006/2007 do Rumos Dança, Maíra Spanghero aborda essa questão: faz uma definição e diferenciação entre curador, jurado e selecionador e conclui que, no Brasil, não há muito espaço para a autuação dos curadores, tampouco uma política razoável para sua atuação. Mesmo falando a partir de um programa específico - o Rumos Dança – suas reflexões a respeito da indefinição do tema são bastante pertinentes e dizem respeito a uma realidade maior:

Entendo a atuação do jurado associada à festivais e eventos competitivos, o que passa por dar notas respeitando normas mais ou menos pré-definidas. No caso do selecionador, como o próprio nome diz, seu papel é escolher e pinçar os projetos de acordo com critérios definidos pelo edital e/ou pelos participantes da comissão, tal como aconteceu durante alguns dias, horas a fio entre os “curandeiros” (nome dado pelo coreógrafo Alejandro Ahmed, em uma das felizes mesas de boteco) que separaram as propostas apresentadas. Os critérios consistiram em: a coerência entre o que estava escrito e o que era mostrado no vídeo, a relevância e o caráter investigativo em propostas de dança contemporânea. A distribuição geográfica foi um critério secundário, praticamente irrelevante. Assim sendo, os 25 premiados vieram do denominador comum das quatro cabeças dessa equipe.
Já o curador tem uma função diferenciada e as práticas demonstram uma variação grande nesse campo (em muitos casos os apoios nacionais/internacionais e patrocínios podem definir grande parte da programação de um festival). Independente ou funcionário de uma instituição, o curador pode ser aquele que cuida do bem-estar das obras de arte e/ou promove exposições com acervos. Também pode eleger um tema, uma questão, um tipo de prática e, a partir daí, reunir trabalhos que dêem visibilidade múltipla a isso. Existem outras curadorias que propõem releituras de obras históricas ou co-produzem trabalhos sugerindo algum assunto. No Brasil, a área de dança não conta com uma política razoável nem com muitos espaços para a atuação desse profissional. Também não há formação específica. Uma iniciativa nessa direção (mas que não sobreviveu) fazia parte do projeto inicial do Rumos Dança, em 2000. Na época, uma equipe de curadores-assistentes viajou para algumas cidades das regiões brasileiras para assistir ao vivo a apresentação das obras inscritas. (Spanghero, 2007a)

3.4.2 Prós
3.4.2.1 Colocar idéias no papel “exige” clareza de propósito
No início de 2007, Maíra Spanghero (2007b) publicou no site idança (www.idanca.com.br) artigo cujo intuito era contribuir com a classe na hora de se formular projetos. A iniciativa veio de sua participação em comissões de avaliação de projetos e sua constatação – a partir dessas experiências – que a maior parte deles está abaixo das expectativas. “Justificativas frágeis ou desconectadas, desordem, falta de clareza e propostas pouco pensadas estão entre os problemas mais comuns”, destaca Spanghero (2007b).
Em comentário ao artigo de Spanghero, um artista traz aspectos favoráveis a esse novo modus operandi. Para ele, talvez não da forma desejável, mas uma conseqüência positiva foi a “profissionalização da classe artística”.
Um amigo recentemente me expôs sua preocupação “estamos nos tornando fazedores de projetos, e isso me preocupa porque pode atrapalhar a nossa atuação como criadores”. Eu entendo a sua preocupação, acho que em alguma medida ele tem razão, mas por outro lado, vejo que algum beneficio as leis de incentivo tem nos propiciado, pois, tem exigido o mínimo de organização aos artistas, uma previsão orçamentária, tempo de execução, uma clareza de proposta e conseqüentemente tem nos pressionado na direção de uma profissionalização que se faz necessária .

Nas entrevistas, artistas também reconheceram aspectos positivos do exercício de “parar para escrever”: em grupo, um momento para que o grupo pare e se pergunte as razões que os reuniu.
Então quando a gente mandou o projeto para o edital do Klauss Viana foi uma coisa legal da gente escrever uma coisa junto logo no começo para identificar porque que a gente tinha se juntado, quais eram as vontades do grupo. Tinha uma coisa de pesquisar dança e música que era muito forte que já era o trabalho da Laila e da Débora, mas que a gente também tinha pesquisado durante a faculdade bastante essa relação entre a dança e a música com o aluno da música da Unicamp, então foi legal para clarear e a gente escrever/colocar no papel as coisas e a gente começou a trabalhar e o prêmio saiu no final do ano, na segunda remessa né.


3.4.2.2 Prêmio é reconhecimento para o trabalho e abre outras portas
Alguns artistas dizem que ganhar um prêmio, por um lado, legitima o trabalho, facilitando-os o contato com locais de distribuição e circulação da obra: sinalização de um mínimo de “continuidade” entre editais de fomento e locais de circulação. Por outro, pode sinalizar que a barreira de entrada aos que não conseguirem prêmios só aumenta. Entretanto, aqui não devemos esquecer o outro lado colocado por alguns artistas: o fato de terem ganhado prêmio empurrara cachês para baixo, pois já teriam tido “financiamento para realizá-lo”.
[...] PAC, o Fomento ou o Rumos dança, quando você ganha, por você ter ganhado, o prêmio automaticamente dá um reconhecimento pro seu trabalho, então isso faz com que você tenha a possibilidade de dialogar com outros lugares [...] eu acho que é bom, quando você ganha uma coisa, por exemplo eu ganhei o Rumos é muito mais fácil você falar com eles, com essa pessoa, eu falei olha depois vai estar na divulgação o seu nome né.

3.4.2.3 Colocar artistas em diálogo: bom formato
Editais e Festivais que permitem o intercâmbio entre artistas são vistos com muitos bons olhos: ambiente de troca, oxigenação de pesquisa, aprendizado, encontros, alimento para criação....
Então ele me ajudou como: pondo em contato com outros artistas que discutiam, tinham eventos que ia acontecer, que eles iam fazer eles convidavam pessoas que eles achavam que tinha a ver [...] Então esse Obra em Construção mostrou também um pouquinho uma maneira fácil de colocar os artistas em contato e tínhamos um espaço e façam aí e teve uma performance no final no Centro Cultural Banco do Brasil, mas também sem nenhuma pressão de ... Era um laboratório mesmo

[sobre o Festival de Nova Dança de Brasília] Então era, um lugar que se encontravam pessoas do Brasil do exterior, da América Latina que estão trabalhando com dança e sobrevivendo das suas maneiras sobre isso...... com criação...então eu tenho falado: nossa gente tem pessoas pensando e sobrevivendo, pensando coisas. E aí quando a gente foi para esses encontros era uma coisa de se perceber o quanto você está no lugar ainda do começo e o quanto você precisava continuar caminhando. E aí era assim tipo, porque aí foi muito legal também foi um encontro (...)

3.4.2.4 Produto é a pesquisa em si
Então a Funarte, para a gente, era ideal nesse sentido: a gente estava pesquisando e estava recebendo pra isso. A gente não tinha que justificar essa pesquisa por nenhum outro meio, era a pesquisa em si. A importância da pesquisa era ela própria. Nesse sentido eu acho mais interessante. Porque é ótimo você oferecer workshops, você oferecer contrapartidas, mas às vezes não cabe no projeto. Nesse projeto nosso da Funarte, por exemplo, não cabia, workshop não cabia, a gente estava começando a pesquisar a gente nem sabia o que era ainda a nossa linguagem, como é que a gente ia oferecer um workshop e ao mesmo tempo para realizar essa pesquisa, a gente precisava de dinheiro então... Essa é a questão.
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3.4.2.5 Temporadas de dança
Uma mudança de cenário positiva apontada pelos artistas pós-editais é o surgimento de temporadas de dança um pouco mais longas e a destinação de teatros exclusivamente para a dança – Teatro da Dança e Galeria Olido – com programação contínua. Mas ainda é insuficiente, aspecto que retomamos no item 3.5.
temporada de dança começaram a surgir assim mais, temporada de dança, depois que esses prêmios começaram a acontecer né, Klauss Viana, a Pac, fomento, porque existe um incentivo então a gente pode ficar um mês no teatro, dois meses no teatro, entrada franca às vezes, muitas vezes e as pessoas começaram a ter o costume (...) tem outra entrada de dança em tal teatro, eu vou ver e ah em tal, tal dia vai ter um... Antes disso quando eu vim para São Paulo não tinha isso que tem agora...

As temporadas são muito pequenas, eu acho que pro fomento está melhorando porque agora a gente tem mais dinheiro, o problema do fomento é que a gente não tem dinheiro pra viver só desses projetos e é muito trabalho, dirigindo companhia.

Como teve a mostra dos fomentados, que foi super bacana.

3.4.2.6 Abertura para novos
Sem dúvida, um ponto polêmico. Para muitos, esse é um aspecto que não está resolvido nos editais: “novos e velhos” competindo pelos mesmos recursos, sem nichos específicos. Entretanto, alguns artistas apontam a existência dos diversos editais em que “todos competem igualmente” como uma possibilidade de entrada para os novos. Antes, só os “antigos” tinham chance de conseguir pauta nos exíguos espaços de circulação, por exemplo.
[...] então está dando abertura pros novos também [...] e continuidade pra coisa porque se isso hoje em dia não dá mais pra, quer dizer até dá né porque com esses projetos, com esses editais tal então tá propiciando né novos artistas, novos pesquisadores, novos coreógrafos tal de chegar e concorrer também.
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3.4.2.7 Minuta do edital para consulta pública antes
Novidade no edital 2008/2009: a Funarte disponibilizou a minuta do edital para consulta pública, antes de publicá-la, com “o objetivo de garantir a transparência na elaboração das políticas culturais da instituição” – será uma iniciativa democrática do atual presidente da instituição, artista ativo, ator, diretor e professor?

3.4.3 Contras
3.4.3.1 Perenidade dos editais: não dá pra se acomodar.
Ponto já ressaltado anteriormente: não há garantias de que o edital continuará existindo, tampouco que se será vencedor. Assim, como ter continuidade de pesquisa e trabalho? O ideal, dizem os artistas, seria conseguir estabilidade sem depender de editais: quando viessem, seria uma “folga”, um alento mais, mas não o “único porto”, por não ser nada seguro.
[...] quando eu saí da Companhia em 2002 e 2002 foi um período terrível, porque a bolsa Vitae acabou, daí o prêmio Flávio Rangel que a gente achou que ia começar por todo ano não saiu, várias coisas tanto do lado ... 2002 foi um ano péssimo porque parecia que todos os apoios tinham sumido né?

Fomento apóia oito projetos em cada edição. Quantas mil pessoas estão precisando de grana pra trabalhar então são editais que dão um dinheiro muito pontuais. As pessoas não tem segurança nenhuma de que elas vão conseguir ter um trabalho continuado, continuar uma pesquisa, assim como a lei de incentivo também não garante essa continuidade,. Então acho que é muito difícil nesse sentido dessa instabilidade você não sabe quando você vai ser aprovado num edital, quando você não vai.

eu sinto que tem que ter um olhar pra isso assim pra gente se remodelar e não acomodar porque senão a gente também vai acomodar, estourar tem um edital aí eu consegui então eu estou trabalhando, então agora eu tenho um dinheirinho e tal até não sei quando. Depois eu consigo mais outro dinheiro, mas a gente não gera o que sustenta, né existir o nosso trabalho, Senão, não tem graça fazer assim.

3.4.3.2 Prazos
Aspecto que precisa de revisão, em muitos sentidos. Primeiro, não se sabe quando sairão os editais: não há como se organizar. O Fomento à Dança, por exemplo, cujas datas de lançamento de edital estão previstas na Lei que o rege – janeiro e julho – em suas quatro edições não foram respeitadas. Outro exemplo é o Funarte Klauss Vianna 2008, que em abril foi anunciado para maio. Até o final de junho, não havia sido lançado.
[...] o edital e você tem que elaborar o projeto, entregar o projeto e daí você nunca sabe o prazo que ele sai quando sai, porque realmente a gente nunca sabe quando eles vão dar a resposta tem um mínimo de prazo que eles dão né o máximo a gente não sabe.

Em relação aos prazos, outro aspecto complicado – já ressaltado anteriormente em relação ao Fomento - é o prazo de realização: na maior parte das vezes, é curto. Hoje, os prêmios têm duração máxima de um ano, o que, para pesquisa, é um tempo curto, na avaliação dos artistas.
O Fomento e a Vitae é mais tempo, mas eu acho que, por exemplo, a minha mãe me falou uma vez que eu tava pra estrear a Ofélia e eu tinha criado - a cultura inglesa dá pouco tempo são quatro meses, então eu tava nervosa, ela virou e falou assim: “mas você nunca sobe no palco por quatro meses você dança tua vida inteira, você dança desde os seus 6 anos de idade então se você pensar no seu trabalho assim você não tá apresentando ali quatro meses de trabalho você tá apresentando ali muito tempo de trabalho”. Agora, quando você tá trabalhando com uma pessoa nova [...] aí eu acho que precisa mesmo de muito tempo. Então o meu trabalho solo [...] eu não fiz aquilo em um ano de mestrado, eu fiz aquilo, eu fiz faculdade de dança, eu fiz pós-graduação, eu fiz mestrado e deu origem aquilo; aí a Bolsa Vitae que foram oito meses deu origem a mais um negócio então eu tive experiências longas e experiências curtas eu acho que eu as duas são interessantes.

E..., e..., eu acho que nesse último edital já tiveram algumas pequenas mudanças e tal, mas eu acho que ainda precisa... Ter uma coisa de um ano, um projeto de um ano no máximo, eu acho pouco tempo. Ou como é que isso se estende?

3.4.3.3 Vender-se, adaptar-se?
“Aceitação de um molde”: muitas vezes, essa é a sensação dos artistas em relação aos prêmios e editais. Adequar-se às exigências, muitas vezes, influencia processos criativos. Até que ponto ceder para poder concorrer ao financiamento? O perigo, dizem alguns, é entrar num automatismo de grupos que se unem para elaborar propostas que se adaptem, sem nunca buscarem outras alternativas ou formatos.
Às vezes é lógico que a gente vai mesmo atrás de dinheiro, de onde esta a grana, e às vezes a gente tem que, adequar projetos nossos com a idéia pro formato do edital, isso ocorre sim mas a gente tenta manter os nossos princípios de criação, né?

Então eu acho que assim um pouco o lugar que estão os prêmios agora é de um, enfim já fechou, é de um não sei se é o conformismo, mas uma aceitação de um molde e de se colocar nesse molde, que tem sido isso e que na criação é muito difícil. [O molde é o molde do edital] É, por exemplo: você tem seis meses para fazer uma criação. Você é um grupo de pessoas que não se conhecem, que são profissionais que mais ou menos se conhecem, mas nunca trabalharam junto, são pessoas que fazem aula junto ou são do mesmo nível artístico no sentido do ambiente e as pessoas se juntam pra fazer um projeto de uma criação para fazer uma temporada no final de fevereiro, que prum projeto artístico de que eu acredito que é uma trajetória, isso é muito delicado. Não que não possa acontecer, não que não possa ser válido também, mas é muito complicado a gente: ah se pensa isso então é isso, que eu me enquadro:ah, então vamos juntar agora todos juntos e vamos fazer um projeto que é o que quem cala consente claro, é uma maneira de sobrevivência. Mas, na verdade, eu sinto falta do que a gente pensa assim: “caramba, gente, mas será que é essa, esse é o nosso molde?”, “será que é isso, será que eu preciso de um ano para se criar um negócio ou será que eu preciso de seis meses?” Esse tempo sabe que a criação precisa que eu acho que é um pouco por isso que às vezes também não entra na discussão, está entrando num automatismo (...) estreou e temporada de dois meses.

3.4.3.4 Competição desigual entre pares
É uma competição por recursos: uma selva de pedras. E, por falta de algumas diferenciações, há cenários de muita desigualdade, com “todo mundo no mesmo balaio”. Primeiro, em relação ao tempo de carreira, aspecto salientado por artistas novos e mais velhos:
As políticas fazem competir uma pessoa que está há 10 anos pesquisando... Chega num caráter de competição porque é restrito então entra num caráter de competição então fica assim: a pessoa acabou de sair da faculdade tem uma história na arte e tal, e uma pessoa ali 10 anos e esses dois trabalhos tem que estar no mesmo edital, o que é difícil né, porque aí você fala ah mas tem outro fulano mas tem outro sicrano, mas como assim? Ah mas aí “só ganhou gente conhecida dessa vez”, aí fica essa coisa que não se define, porque aí tem um trabalho super ainda que tem que se desenvolver, que a linguagem ainda não está clara e você no processo que chegaram num lugar muito distante, então fica uma coisa, porque essa coisa do balaio né aí todo mundo vai, vai tirando, caçando né, que é o que pede de seleção, quem está começando e tudo né quem que tem no seu estado.

não pode ser assim injusto com quem está chegando também, ah porque está chegando então é uma coisa, não, não é isso, tem que ter... aí no caso o pessoal que está pensando as regras dos editais tem que ter muita, muita coerência e pensar muito e bem pra não acontecer injustiças né.

Outro aspecto que poucos editais levam em conta é o tamanho dos grupos: trabalhos solos ou duetos e grupos com dez, quinze integrantes, competem nas mesmas categorias, pelos mesmos valores.
Então, agora os problemas é isso, por exemplo, você entrar de repente pra disputar uma verba e a pessoa que vai trabalhar com uma, duas ou três pessoas e com um grupo de ... De quinze. Um grupo é já que tem um trabalho de dez pessoas, uma equipe e tal isso vai disputar a mesma verba, acho que deveria ter uma certa coerência ...

3.4.3.5 Contrapartidas
Prêmios para a pesquisa de linguagem, montagem de espetáculos ou circulação que exigem outras atividades de cunho social – para além da finalidade do prêmio - por contrapartida. Para artistas, uma exigência que irá tirá-los do foco da pesquisa, colocando energia em atividades que não seriam importantes ao “processo mãe”. Ao mesmo tempo, é um “tapa buracos” para políticas públicas: artistas não são, necessariamente, bons arte-educadores. São competências distintas. Em alguns processos, faz sentido oferecer oficinas à população; em outros, não.
O Pac também tinha uma contrapartida e tal, então eu falo ideal no sentido de você poder fazer a pesquisa, que é o porque você recebe o dinheiro, sem ter que justificar essa pesquisa com workshop para a comunidade, que pode ser muito legal se cabe dentro do projeto, mas às vezes não cabe e você tem que dispensar uma energia enorme sua para .... tem que mudar de caminho por um tempo pra depois voltar para a pesquisa, ou se dividir porque você, se justificar seu trabalho criativo por outro caminho que só o projeto criativo não justifica, não se justifica.

Tem uma coisa que a gente acha que não necessariamente precise tá com um cunho social porque a arte em si já é, mas dentro do grupo a gente gosta de fazer essa troca com o público, então pra gente é um prazer, então pra gente não é um sacrifício, entendeu? Fazer um workshop é vinculado com o espetáculo ou fazer bate-papo depois essas reflexões, isso acrescenta muito pra gente e isso é uma troca bem direta além da troca que você tem de espectador e artista, dessa troca que você tem em palco ou em espaços alternativos, que a gente dança muito em espaços alternativos também, a gente não fica só em palco então a gente dança desde bares na rua que é uma proposta assim de levar a arte contemporânea pra outros espaços e pra públicos que às vezes não estariam nestes lugares assistindo dança contemporânea. É também dar workshop ou fazer essa contrapartida social está dentro do nosso propósito.

Agora eles tiraram essa coisa de dar oficina, né? Mas pra gente tinha isso... a gente queria fazer isso, mas também acho a maior viagem... se você está propondo um espetáculo que vai ser gratuito, você já está dando o retorno, não precisa fazer isso, por que é uma demanda, também... Eu, eu acho bacana... dividir com as pessoas, falar do processo; acho que isso enriquece, como é a coisa do Balangandança, que tem a ver com educação, então eu acho que já é meio pesquisa, pra gente também faz parte da pesquisa, eu acho que é super legal, mas tem gente que não tem que achar...

Estratégias de sobrevivência. Os artistas têm buscado formas alternativas e criativas de atender às exigências dos editais, sem comprometer seus processos criativos. Sem dúvida, novos formatos “estimulados” pelos editais.
[...] é um site do processo inteiro a cada três semanas a gente coloca um material novo [...] foi um jeito que a gente achou de abrir pra sociedade sem ter que dar tanto workshop.

Helena Katz, em artigo no O Estado de São Paulo em que reflete sobre a dança paulista no ano de 2007, traz um outro aspecto para se refletir em relação à obrigatoriedade de se fazer espetáculos de graça, pois nublaria uma compreensão fundamental da população de que “dançar é uma atividade profissional e que quem a desempenha vive dela”.
Dizer à população que não é necessário pagar para assistir dança, em vez de instituir preços subsidiados, talvez carregue um potencial deseducativo nublando uma compreensão fundamental: a de que aquela é uma atividade profissional e, quem a desempenha, vive dela (Katz, 2007a)
3.4.3.6 Cópia do teatro
Muitos dos editais em dança inspiraram-se em editais prévios da teatro e não foram revistos. Especificidades da dança não estão contempladas, assim como aspectos que têm sentido ao teatro e não à dança ainda são exigidos. Aspecto que denota a necessidade da classe organizar-se, debater para compreender as especificidades e exigir as alterações. Voltamos à necessidade de discussão e acordo das especificidades e alicerces que envolvem a dança.
[...] ninguém sentou e olhou aquilo e falou: “gente então dança não tem isso” [ proposta de encenação]; E isso é só uma coisinha que indica que não ta rolando pensamento. Já rolou algum pensamento, porque tiraram as oficinas aumentaram as apresentações e tiraram o foco dos teatros públicos né. Então já deu uma reformuladinha, mas mesmo assim, não sei eu acho que é isso pra mim é uma coisa a resolver aí: o que é esta tal pesquisa em dança? O que significa?


3.5 Faltam espaços de circulação
Na cidade de São Paulo, os espaços para circulação e distribuição da produção em dança são exíguos, apesar das recentes conquistas dos últimos anos, principalmente pelo advento dos editais (na tabela 1, resumimos os locais citados e alguns comentários feitos sobre cada um deles).
Sim, o público de dança é pequeno: hoje, não é um bom negócio. Mas as condições não são propícias: há pouco espaço na mídia e muito preconceito. Pelo pouco espaço dedicado na mídia às artes em geral, o público “não fica sabendo que cada uma dessas áreas é muito mais ampla do que parece e evidentemente não pode desfrutá-las”. Já o cinema, que tem sido tratado, segundo Katz, como o “futebol das artes” e tem ganhado espaço na mídia dos últimos anos pode ser o exemplo da relevância do espaço em mídia e critica especializada para a formação de público:
O contrário disso pode ser visto no que aconteceu com o cinema - que se tornou o futebol da cultura no Brasil da Lei do Audiovisual: o acompanhamento diário pela mídia de todo o seu sistema de produção (fabricação de estrelas, defesa e expansão de mercado, manutenção e ampliação de privilégios, premiações, etc.) resulta em aumento de público, que retro-alimenta a necessidade desse espaço reservado para o cinema. Sem jornalismo cultural ativo em todas as outras áreas artísticas, os criadores precisam repensar a sua atuação. (Helena Katz)

Não há uma cultura de “se assistir” dança. Por exemplo, crianças que freqüentam uma escola de classe média alta da cidade, que tem aula de dança no currículo, não conhecem nada, acham tudo estranho:

Eu vejo meus alunos lá no Oswald... não meus alunos, ninguém sabe nada, assim... Eu mostro vídeo, sabe? E eles acham estranho.

Poderia ser diferente: como lembra uma artista, eventos com muito investimento em mídia têm público de gente que não é da área. Existe pouco público porque há pouco investimento em formação de platéia. E formação de platéia é, segundo Katz, “estratégia de comunicação”. Mas para se ter uma estratégia de comunicação eficiente, é necessário clareza do que se quer comunicar : “primeiro a gente precisa conversar para ver o que precisa para que a dança fique forte, aí isso se organiza em programas, programa de formação de platéias.”
Às vezes tinha que virar uma coisa “in”, né? De repente o Carlton Dance tinha uma galera que você não sabia da onde que vinha, assim...É, mas tinha uma galera que você nunca viu em nenhum espetáculo de dança, sabe?

Se se ganhou espaços, as temporadas continuam sendo curtas: não há tempo de um espetáculo firmar-se, do boca a boca acontecer.
Não eu acho que tem espaço, o que eu sinto dificuldade por exemplo é com temporadas aqui em São Paulo, tanto que pro fomento eu já fechei o “Viga” um mês a gente vai fazer 12 apresentações mais a mostra do fomento porque eu tenho muita angústia de criar e apresentar três vezes, então isso é muito frustrante...

E as temporadas, ainda... melhorou um pouquinho também. Mas são muito curtas ainda. Agora ainda a gente consegue duas semanas, é como se a gente tivesse fazendo uma grande temporada... (...)

Algumas iniciativas de locais de circulação – do Sesc Avenida Paulista e do Centro Cultural São Paulo - tem sido reconhecidas como inovações bem vindas que rompem com essa realidade de temporadas relâmpagos . Entretanto, ironicamente, essa é uma “unidade provisória do Sesc”....
Outra dessas ações foi a do Sesc Avenida Paulista na área da dança, cuja fina coerência curatorial irrigou toda a temporada. Além disso, rompeu também com a nefasta camisa-de-força das apresentações relâmpago de dois ou três dias, que não têm a menor chance de formar platéias, e provou que a dança pode, sim, ser apresentada por um mínimo de três semanas consecutivas - comportamento, aliás, também sinalizado pela programação de dança do Centro Cultural São Paulo (Katz, 2007b).

Ainda em relação à circulação, mais um ponto deve ser observado, que se relaciona com uma realidade brasileira mais ampla do que o cenário paulista e com conseqüências mais graves: o cenário brasileiro de festivais repete o cenário do festival de Joinvile, que distribui uma “dança que é tão do agrado do mercado, uma dança energética, bonita, rítmica, melódica, com corpos impecáveis”. Ou seja, há, no Brasil, diferentemente da Europa, por exemplo, através desses festivais, a massificação de uma compreensão do que é dança sob uma ótica de empreendimentos de mercado, mas não artísticos.
E isso é completamente longe da arte, completamente dentro do comércio. São empreendimentos comerciais alias de grande sucesso, mas não são empreendimentos artísticos. [...] E justamente porque o nosso cenário de festivais é tão distinto dos festivais europeus, a massificação de um determinado entendimento de dança, se faz nesse modelo festival. Esse é o modelo massificado, que todo mundo que não está fazendo dança pessoalmente ou não está ligado a alguém que faz pessoalmente, tem essa outra completa certeza de que dança é só daquele jeito, completa certeza. Então não tem nenhuma diversidade essa dança que é possível ser apresentada nesse tipo de festival. É ela que está no país todo. Então, contra isso a pesquisa de linguagem é frágil, porque ela não encontra a mesma força dos canais distributivos, eles não são tão fortes, e isso é duro de enfrentar. Mas não há o que fazer a não ser começar a promover esses outros festivais, como por exemplo são o FID, o Panorama, o Dança Recife, alguns festivais Aqui em São Paulo nós não temos, aqui nós temos o que, o festival SESI, que alias ainda nem saiu esse ano. Lembra, era em fevereiro, SESI panorama de dança, e nós estamos em maio. (Helena Katz)



Tabela 1
Local Prós Contras
Centro Cultural São Paulo “eu sinto que ali tá voltando que ele era a vitrine da dança né, só que teve um período aí que deu uma queda e agora eu sinto que está voltando: você já vai lá e tem publico”

“pra quem tá saindo da faculdade, quem tá começando dançar eu acho ainda aí o único espaço... “ “no Centro Cultural São Paulo tudo precisava ser inédito [...]” Letícia
Dança em Pauta - CCBB “eles não chamavam como pesquisa não, era uma verba para você montar a sua coreografia e apresentar”

Galeria Olido “Tá começando um movimento, na galeria Olido já está rolando porque ela começou beeem... é porque você ia lá não tinha público né? Algumas pessoas tinham, agora você já vai num espetáculo e vai ver um público que não são só os amigos de quem está dançando... ... então é um lugar que ficou ali né, insistiu, insistiu, insistiu é... as pessoas tem menos medo de ir ao centro”

“os espaços que eu acho que as pessoas já começam a circular e não sei quê... que é a Olido, né... O Centro Cultural... esses de sempre”


Rede SESC “SESC é outro grande provedor de evento”


“Tem o Sesc Paulista, acho que foi bem importante, que abriu aquele andar da dança. E até agente que inaugurou esse andar, acho que nono ou décimo primeiro, nem lembro... e começaram as temporadas, né? E já, quer dizer, um mês, às vezes dá uma estendida” “todo artista fala ah entrou graças do SESC você consegue”.

eu vendo um trabalho meu pro Sesc mesmo que ele pague um cachê teoricamente bom, só que eu não danço esse espetáculo há seis meses, então eu tenho que ensaiar um mês, um mês e pouco pra então o dinheiro acaba sendo pouco, não é uma boa política, essa então entra na política de difusão de trabalhos né?

“Era assim: eram vinte apresentações no mês, cada dia numa cidade. Dava grana, metade da grana que eles deviam pagar; e a gente produziu o trabalho”.

“Teve um ano que ele gostava pra caramba e no outro ano não comprava de jeito nenhum. ‘Será que a gente fez alguma coisa, tal?’, por que é muito fácil se sujar”

“O único espaço, o SESC Rio é muito diferente daqui, é só o SESC Copacabana que faz um ativismo pela dança contemporânea. Os outros SESC até exibem”

Teatro de Dança “tem uma menina que trabalha hoje no Teatro Dança e ela tava comentando que o Teatro de Dança ainda está nessa batalha de público”

Teatro Fábrica – Primavera da Dança “no Primavera Dança que era um lugar que tava querendo abrir espaço pra dança” “A gente tinha que pagar uma só, então a gente tinha que dar 120 ou 180 reais por dia. Se a bilheteria não cobrisse, a bilheteria ficava pra eles.[...]”





4 Da conjuntura: grupos com prazo de validade, arte solitária ...
Nesse capítulo, discutiremos alguns aspectos relacionados às “conversas anteriores” que, cremos, deveríamos, enquanto classe, realizar a fim de reformular (ou formular) políticas de fomento (público ou privadas) para a área. Partimos do mapeamento contextual dos “fatores conjunturais que interferem no complexo setor da dança nas diferentes regiões brasileiras” realizado em 2001 pelo Rumos Itaú Cultural Dança, organizado pela professora Fabiana Britto (2001). Como a presente pesquisa tem por foco a cidade de São Paulo, restringimo-nos ao capítulo de autoria de Leda Pereira, sobre a cidade.
Segundo Pereira (2001), 90% dos bailarinos de maior visibilidade em São Paulo têm entre 30 e 45 anos, o que apontaria, por um lado, uma dança inclusiva; por outra, a falta de renovação. Esse cenário ainda fica mais complicado se adicionarmos a próxima conclusão da pesquisadora: a maior parte dos profissionais da dança cria e investiga isoladamente. Será que os jovens têm condição de fazer trabalhos solos consistentes, com exceção dos “pai-trocinados?” Será que os formatos dos editais vigentes não contribuem para esse formato? Será que esse formato não contribui para a desarticulação da classe, e um olhar do “outro” como concorrente?
Nesse cenário, a autora também aponta o desamparo dos recursos institucionais e a falta de articulação da classe como fatores que mereceriam destaque. Em 2001, havia uma “escassez de companhias”: foram mapeadas 18 companhias, sendo apenas quatro estáveis e subvencionadas, criadas na década de 70 (Balé da Cidade de São Paulo, Cia. 2 do Bale da Cidade, Cia. De Diadema e Cia. de Ribeirão Preto). Se compararmos com o teatro, esse número é ínfimo.
O capítulo está dividido em duas sessões. Na primeira (4.1), os obstáculos à entrada dos novos artistas (na maior parte das vezes, jovens) e “as portas de entrada”. No final da primeira parte (4.1.1), damos uma atenção especial ao papel das faculdades de dança, que têm aumentado consideravelmente na última década. Já a segunda parte do capítulo (4.2) é dedicada às causa da “escassez de companhias”: no teatro é clara a idéia de “arte coletiva”. Será isso válido na dança também? Uma nova modalidade estaria surgindo: grupos com prazo de validade, para editais (4.2.1): o quê é grupo? Para terminar, nos testemunhos e opiniões dos artistas, as vantagens e mazelas de se estar só ou em grupo (4.2.2).
4.1 Ser novo: como entrar e ser aceito?
Como afirmamos anteriormente, a questão dos “nichos” nos editais não está bem resolvida – “todos são colocados num mesmo saco” -, tampouco a questão de locais para distribuição das obras. Nessa conjuntura, outra situação enevoada é a “porta de entrada” para novos artistas. Atualmente, há poucos espaços de convivência e poucos festivais, Mostras ou eventos que tenham essa proposta de “vitrine de novos”. Se os “velhos de guerra” têm dificuldade em firmar-se, o cenário para os novatos é ainda pior: não surpreende Pereira (2001) ter constatado que 80% dos artistas têm entre 30 e 45 anos de idade. Como relata uma artista, não há mais um lugar, um mercado para o “pré-profissional”.
[...] há um tempo que eu estou ouvindo essa conversa rolar por aí . Também eu acho que está dentro, um lugar que existia que é o lugar do pré-profissional porque agora quem acabou de sair da faculdade, quem já tá fazendo há muito tempo, tá todo mundo no mesmo balaio em questão de mercado, de onde se apresenta, os espaços onde se apresenta tá todo mundo no mesmo balaio [...] E não tem, não existe esse mercado pré-profissional que é uma coisa que a gente chama de amador que nem todo mundo gosta né mas ok, que você vai aí você se apresenta aqui, você se apresenta ali, você se apresenta lá, aqui, aí você vai criando, você vai armando o negócio.

Muitos de fora de São Paulo, que chegam à megalópole com poucas (ou mesmo sem) referências, sem conhecer ninguém. Mesmo os formados pela Unicamp, saídos de um importante curso de dança, sentem-se perdidos na mudança para São Paulo, necessária aos que querem seguir carreira artística. No interior, dizem, podem ser professores, mas dificilmente artistas.
Acho que o começo foi bem difícil, porque a gente chegou e ninguém conhecia a gente e a gente não conhece as pessoas direito e como é uma área que tem seus nichos mais para o gueto então tem muito essa entrada no núcleo né na comunidade. É, então no começo era meio: “quem são vocês? “, “com quem que eu estou encontrando?”.

É, mas tinha coisa de chegar em São Paulo que eu sentia muito forte que era, a gente era profissional em dança né, a gente tinha diploma de bacharel, mas a gente não tinha trabalho né. A gente tinha a nossa pesquisa, que a gente continuou fazendo sem grana por muito tempo, mas a minha sensação era de voltar a ser aluna, de sair da faculdade mas continuar sendo aluna porque a gente foi para o Nova Dança e tinha essa coisa de ninguém conhecer, então a gente chegou lá como pessoas comuns que vão fazer aulas de dança. E até as pessoas começarem a conhecer o nosso trabalho, a gente apresentou uma vez no”Sexta na Tomada”, que foi super legal e as pessoas começaram a falar ah tal... são pessoas que estão trabalhando mesmo...

Ao sair da faculdade, a necessidade de um lugar de referência, um porto seguro. Talvez para uma leva nova de artistas que está se formando hoje em cursos na cidade, a faculdade, ou os laços ali construídos, sirvam como pano de fundo. Entretanto, nos casos aqui “coletados”, a maior parte dos artistas fez seus estudos fora de São Paulo. Alguns estúdios particulares têm cumprido essa função: nas entrevistas aqui coletadas, o Espaço Viver e o Estúdio Nova Dança. O segundo, cuja sede do Bixiga encerrou suas atividades em fevereiro de 2007 - é citado como lugar de referência ao chegar , bem como “porta de entrada” para trabalhos de novos, em eventos como o “Terças de Dança” (1995-2001) e o Sexta na Tomada (2005-2006). O Teorema também é citado como possível caminho de entrada.
tem essa condição ah você ainda tem suporte do seu pai ainda, a gente foi para um lugar específico, querendo ou não, o Nova Dança estava fomentando o pensamento e estava de certa forma, sustentava as pessoas ali, porque era um lugar de encontro, as pessoas se encontravam conversavam então você estava chegando em São Paulo às vezes ah e tal pessoa sentava com você e conversava “ah o que você pensa sobre isso, ah essa coisa, essa coisa”... Isso faz muita diferença se você saiu da universidade e esta na sua casa, se você quer trabalhar com dança e com arte se você está na sua casa?

É. E aí quando eu vim pra cá, foi isso, eu vim, dei uma olhada, encontrei o Luis, eu já conhecia a Tica do Nova Dança [...] e eu vim era uma história de dois meses e meio, sei lá legal tipo era um grupo de eu ficar aí com esse trabalho tendo as pessoas e descobrindo o que que era e elas resolvendo ficar porque ela já tava trabalhando comigo e já tava também meio inserida no Nova Dança, essas foram as duas frentes que eu abri.

Aí quando eu voltei do mestrado, eu não conhecia ninguém aqui em São Paulo então eu dava aula de inglês para executivos e meu pai me sustentava, era metade-metade, metade o meu dinheiro da aula de inglês, metade o meu pai me dava e isso foi durante 1 ano e meio mais ou menos e nesse primeiro ano eu não fazia nada de dança, fui só tentando conhecer as pessoas, fui às vezes em núcleos da PUC, fui às vezes na Nova Dança, mas estava difícil achar uma praia pra mim.

E aí fiquei dando essas aulas, tal... teve uma abertura lá no SESC, no sábado eu consegui fazer um grupo que chamava Grupo Experimental e aí era um grupo mais de criação, de pesquisa, foi super legal essa parte. A gente se apresentou em vários lugares, foi engraçado. E aí, no meio disso, eu fui fazer uma oficina com a Adriana (Grechi), que estava vindo da Holanda. Ela deu uma oficina acho que foi em janeiro de 95. Foi lá no Espaço Viver. Aí eu fui fazer... Foi até a Jussara Amaral, do SESC, que falou: “oh, vai fazer”, tal

O Centro Cultural São Paulo é citado como “porta de entrada” para muitos, que chegaram a apresentar trabalhos lá mesmo durante a faculdade. Entretanto, vale assinalar que a mostra “Novos e novíssimos”, para entrantes, deixou de existir há alguns anos, mas a curadoria dos tradicionais “Feminino na Dança” e “Masculino na Dança” tem aberto espaço para jovens artistas.
Nas Terças de Dança, em 97 e daí em 98 eu estreei o trabalho. Então no caso nesse primeiro trabalho que pra mim foi eu tava chegando de São Paulo sem referência nenhuma, início de carreira né você não sabe dançar igual (...) então o que aconteceu foi isso né, foi a Rede Estágio, as Terças de dança e o festival do Centro Cultural São Paulo.

Eu trouxe um solo de lá {Inglaterra} que foi o meu mestrado e eu fiz esse solo no Centro Cultural de São Paulo feminino na dança e antes disso eu tinha ganho uma bolsa de três meses chamada “Rede Stagium” que não tem mais.

Se há barreiras por “nichos ou guetos”, sentem que há barreiras por linguagens: há “linguagens com mais entrada e linguagens com menos entrada”.

[...] a gente tem uma dificuldade bem grande de entrar, não sei se é a linguagem que a gente escreve, ou se é a linguagem que a gente dança, porque na dança contemporânea nem todo mundo aceita o nosso trabalho porque ele é meio popular, ele é... ele ... muitas linguagens, mas a gente atinge um público, se fosse dizer em escala tipo B e C, C e C, tem um ponto então às vezes a maior ... às vezes eu não sei como que isso é visto no meio da dança, mas a gente se inscreve em vários editais, muitas vezes aí tem isso, né?

4.1.1 O papel da faculdade
Formação: uma questão chave e crítica. Para alguns, a constatação de que o curso universitário não basta é fundamental e definitiva. Pode até ser nefasta: “formatar demais” e aí sair-se “sem o foguinho”, os estalos da criação: muito técnica, pouca poesia.
[...] desde do começo, desde o segundo o ano a gente sacou que a universidade não era o fim da formação, ela não ia me dar tudo o que eu precisava para encontrar a Tica. Aliás, ela estava só começando a coisa e aí a gente falou “putz então vamos nessa né”. Então assim nas férias workshop, então o que que a gente quer: ai! quer dança contemporânea aí vem essa (...) de aí gente mas acho que não é muito isso não é sobre isso “legal isso mas não é isso”. Aí encontramos o contato, nossa é isso.,”Ah tem um festival internacional da nova dança em Brasília que eles aceitam inscrição para criadores e coreógrafos”. A gente só tinha um trabalho, “ah vamos mandar, aí a gente entrou e aí fomentou muito...

Eu acho que é um lugar assim que está nascendo, eu acho que é um ponto eu lembro isso já tem um tempo que eu estava conversando com uma menina que ela dava aula pela faculdade em Santa Catarina e ela dava aula nessa faculdade e eu lembro que a gente estava conversando e ela falou assim: eu ainda não sei quem são esses profissionais da faculdade, o que eles são(...) Quem são ... os artistas assim, os que estão indo pro palco assim, os que estão fazendo projetos artísticos, quem são? A universidade é suficiente ou eles tem uma formação paralela? (...)Que é quando você vai trazendo o seus interesses, quando você vai... porque o que eu vejo é que só a faculdade não é o suficiente do que eu tô vendo ...

Quais são as questões né o que que tá falando, o que que quer, o que... porque às vezes sai formatado. é assim que se faz, e sai sem o foguinho tem que ter (risos) tem que ter um foguinho , se não fica chato, negócio chato.

Não há consenso: há quem ache a formação na faculdade salutar, melhor do que “a coisa solta” da formação não tradicional, em cursos livres, em diferentes linguagens e metodologias.
A cidade de São Paulo não forma tão bem intérpretes de dança contemporânea porque as pessoas ficam fazendo aula aqui ali, aqui ali, e muito em estúdio né? E a Unicamp forma o cara bem.

Provavelmente, mais uma dessas questões que demandam “conversas antes”. O que é formação e formação para quê. Se a dança é vista como um ofício com determinadas demandas técnicas, nada melhor do que um curso duradouro, que passe por todas as questões técnicas primordiais e as “teóricas adicionais”, em diálogo com as questões primordiais ao ofício.
Segundo Helena Katz, falta uma inserção da dança na universidade no Brasil: “a produção acadêmica é muito recente na área [...] tem, no país, 15 anos.” Até agora, o que aconteceu foi “a formação de um campo” que deve se tornar cada vez mais produtivo.
Então, a gente tá no 1º tempo do jogo. O 2º tempo desse jogo é quando esse campo, com pesquisadores capacitados, começarem a formar esses pesquisadores, nos seus Estados. E para isso é preciso mais cursos de dança sendo criados. [...] Mas produção de conhecimento é no pós graduação. Graduação é aquisição de habilidades especificas ou de habilidades de ensino, licenciatura ou bacharelado. Mas produção de conhecimento mesmo é no pós graduação (Helena Katz).

E, a partir do momento que mais pesquisas forem formuladas na universidade – na maior parte das vezes em diálogo com a prática – mais a prática poderá beneficiar-se dessa ampliação do campo. Para Katz, um caminho de mais diálogo e menos preconceito entre artistas e acadêmicos.
Então é desse jeito que a universidade pode cumprir um papel de ajudar o artista que está lá fora da universidade a pensar o seu trabalho. Então, essa junção entre teoria e prática, que na área da dança é fundamental, é com ela que eu tenho certeza que nós não vamos ficar nesse momento que nós estamos, que os artistas que não estão na universidade tem preconceito dos artistas que estão na universidade, e os artistas que estão na universidade tem preconceito dos artistas que não estão na universidade, e essa situação se dissolverá. Isso é uma questão histórica, é uma questão de esperar um pouquinho mais, porque vai haver uma maior conectividade, de parte a parte. (Helena Katz).
4.2 Vôos solos x vôos em grupo: circunstância ou princípio?
No teatro, é clara a idéia de que o teatro é um empreendimento coletivo. ”A tradição do teatro brasileiro, pelo menos nos últimos 40 e poucos anos, tem em sua veia o grupo, o coletivo [...] A educação teatral de muitas gerações, a partir de então, tem esses coletivos, e sua experiência de ‘atos de comunhão e resistência’, como referência” (CAMARGO, 2008, p.56). A tradição de grupos de teatro das décadas de 1960-1970 concentrava-se em sua disposição de resistência, de ruptura com modelos dominantes. Ao mesmo tempo, “a qualidade do trabalho que um coletivo que tem objetivos comuns consegue realizar é muito mais profunda do que a de um elenco que se associa circunstancialmente”.
A geração dos anos 1980 é “herdeira da tradição do coletivo”. Une-se não só para colocar-se contra a ditadura, mas também para inventar uma nova estética teatral, novas formas de eregir um espetáculo: repensa-se as hierarquias internas exploram-se processos de criação coletivos, a partir de laboratórios. “O envolvimento tão profundo de cada integrante com a obra tem outra conseqüência: um olhar amoroso e absolutamente comprometido; um sentimento de apropriação e autoria” (CAMARGO, 2008, p.56).
Já nos anos 1990, fala-se “em ‘processos colaborativos’ no lugar da ‘criação coletiva’ [...] Há, diferentemente dos anos 70, uma preocupação com “apuro técnico”. [...] No lugar do experimentalismo anterior, há agora a noção de ‘projetos e caminhos melhor estruturados’ (CAMARGO, 2008, p.57).
Será que , assim como o teatro, a dança é vista como um empreendimento coletivo? Pelas entrevistas realizadas, essa idéia parece incipiente, “o que pode ser um grande obstáculo para [...] a construção de movimentos coletivos de invenção de vivências singulares na dança” (CAMARGO, 2008, p.55). Ao mesmo tempo, ao contrário do que tem acontecido no teatro nas ultimas quatro décadas, a tradição na dança é de trabalhos solos ou duetos, também pela dificuldade de sobrevivência financeira. Como subdividir cachês ínfimos? E quando todos têm vidas duplas, triplas, achar tempo em comum vira uma tarefa quase impossível.
(...) então de fato é diferente, eu não consigo admitir ou não cabe dentro de mim um grupo maior do que quatro... (risos) É muita gente fazendo (...), é muita gente! Tem um lado do solo que é tudo mais fácil do que é a questão de horário de disponibilidade, de quando que pode, como é que pode, se chega se não chega, e não sei o que a data tal, então quando você é um você bate, quando você é um você vai, não tem muito se o trabalho tem a qualidade tem um lugar ali que você consegue aprofundar e um grupo tem um outro lado que se aprofunda que é exatamente dentro da pesquisa a coisa da troca, das relações e dar inseminação mesmo né, quanto mais gente mesmo mais se abre né não fica tudo na sua mão então têm vários . muitas vezes parece que é mais fácil de um, porque você vai a hora que você quer a hora que você pode mas também o seu círculo é menor, a sua rede é menor né você abre vai expandindo o grupo. Mas com certeza o que eu vejo assim grandes, os grandes grupos com muitas pessoas nesse sentido é que tem dificuldade.

A compartilhar e acaba eu acho que a tendência é um pouco essa também indo por esse viés aí, mas é tão importante quanto, o solista ou o criador solitário e o grupo também. Agora o grupo é mais difícil, mais difícil porque quando você recebe a verba você vai dividir com todo mundo....

[...] eu acho que essa coisa do, do solo, muito, acho que muito se deve aquela época que não tinha dinheiro ou de que era muito difícil de juntar as pessoas, nem porque você não tem grana para pagar, mas porque não tem horário, né? É, você trabalha na hora que da, e a hora que da não é a hora que o outro da, isso acabou gerando uma coisa de muita gente trabalhando sozinho, ou em dupla, eu acho que acabou propiciando, sabe?

Há sobreviventes. Iracity Cardoso comenta ter sido uma grande surpresa para ela, na ocasião do julgamento do 1º Edital do Fomento, a existência de muitos projetos de comemoração de 10, 15 anos de grupos independentes. Afinal, desde “a sua época, ser independente é dureza”.
[...] pra mim foi uma grande surpresa, comemorativas, 10 anos, 15 anos não sei o que, que era: “nossa que maravilha, existem grupos independentes que estão comemorando 10 anos de existência”. Eu me lembro que, na minha época, ser grupo independente era uma dureza, como é pra todo mundo em qualquer lugar. O Independente, que não tem uma coisa dependentes no sentido que não tem um contrato estabelecido, então você não tem o salário que pinga todo mês pra você poder trabalhar sossegado, você vai ganhar quando você tem um projeto aprovado, quando... nosso início... (...) é assim pra todo mundo né?(Iracity Cardoso)

Há sim, grupos formados por uma afinidade de projeto artístico, com disposição para a exploração e construção de uma identidade, mas as “situações de união” são múltiplas, bem como os formatos: coletivos, colaborativos, unidos pela juventude, por um projeto comum, por um mínimo de estrutura...
A gente sobrevivia porque tinha o Estúdio, então a gente tinha o lugar pra estar ensaiando, a gente não ganhava a maioria, todas nós ali; a gente pagava pra estar ali, mas a gente tinha essa empolgação de estar criando um novo trabalho de grupo e as pesquisas que a gente desenvolvia. Eu pessoalmente pensava que era pouco horário de ensaio, mas devido as circunstâncias era isso que tinha que ser mesmo. E normalmente era assim: quando a gente conseguia, por exemplo, vender um espetáculo pro SESC a gente pegava, sabia que ia ter esse dinheiro do cachê de espetáculo, ou seja, a grana do final da própria apresentação a gente usava pra comprar figurino, pagar iluminador né.

A gente estava fazendo aula e na mesma turma que a gente [...] aí a gente começou a se aproximar e tal. Primeiro só amizade depois a gente começou a ter vontade de fazer coisas juntos assim.[...]aí a gente elaborou esse idéia e no comecinho de 2006 a gente convidou ele para dirigir. Era um quarteto no começo e a gente convidou ele porque a gente gostava muito do trabalho dele, tanto como professor, como quanto como bailarino e pesquisador e tudo rolava uma afinidade já pessoal e tudo[... ]A sorte do grupo foi que a gente inscreveu logo que a gente construiu o grupo saiu o Klauss Viana, E aí a gente fez um projeto e saiu. Então também fomentou o grupo ter um subsídio né, que daí tinha um foco de trabalho.

Bom eu estou há nove anos trabalhando no coletivo, né? Então pra mim, pra eu ... o ano passado que eu fiz o solo que há muito tempo eu queria e tenho vontades que divergem, não é nem... tipo são anseios próprios que eu tenho que trabalhar sozinha mesmo tá bem claro. Mas eu pra mim foi uma dificuldade fazer o solo por conta disso, porque eu só trabalho em grupo, né? Então as descobertas todas que eu tenho feito.... E a gente tem uma característica que é difícil, que a gente admite que é difícil mas a gente ainda tá comprando, que a gente não tem uma diretora de grupo, entendeu? Então a gente não tem uma pessoa que dirige o grupo, a gente tem hierarquias rotatórias vamos dizer assim. Então o que acontece é assim quando uma pessoa concebe uma coreografia então ela dirige aquela coreografia e aí a direção em geral. A parte burocrática, isso fica tipo, de seis em seis fica uma pessoa e depois muda, às vezes tem os lados, tem os prós e os contras,né? então o que a gente tá aprendendo é que por enquanto esse é o formato que a gente acha que é o melhor, e..., então é super coletivo, super, em todos os aspectos; burocráticos, descobertas, das quedas, da hora de levantar, de ir atrás, de não, vamos rever tudo, compartilhado muitos “eus” ficam ali então você tem (...) e aí você aprende e é tão legal que nesses (...) é legal ver as mudanças talvez mudam as artes mas esses anseios também mudaram muito.

É, e hoje... agora é uma companhia mesmo[...]. Eu acho que depois de tanto tempo trabalhando sozinha ou com mais uma pessoa né, eu tinha trabalhado com o Anderson e com a Alexandra tava na hora de tentar uma coisa mais ousada. Então eu pensei em escrever um projeto de companhia, mas ainda no meu esquema que não é uma companhia muito grande, são quatro pessoas, porque eu tenho muita dificuldade de trabalhar com grupos grandes assim que eu acho que o meu trabalho é muito específico, demora muito tempo pra fazer, quer dizer, por mais que demora muito tempo pra fazer né, eu acho que eu não tenho a capacidade de trabalhar com muita gente ainda, talvez mais pra frente, então são quatro pessoas mais o compositor da trilha.

É, uma produtividade muito mais alta mesmo, assim... E de alimento pessoal, por que você vai, se apresenta, tem público... Você vai no Rio de Janeiro e, mesmo que você ganhe, tudo bem, ok, “to ganhando minha grana”, mas... não tem público, né? Então é difícil, tem que ser tudo junto, não pode ser uma coisa solta, tem que ser uma coisa que... que junte.


4.2.1 Grupo com prazo de validade
Uma nova realidade: grupos que se formam para concorrer a editais. O Fomento à cidade de São Paulo, por exemplo, em suas primeiras edições, era exclusivamente para grupos “compostos por no mínimo quatro dançarinos”. Em sua última edição, não há mais o número de bailarinos delimitado: fala-se em núcleo artístico, definido como “os artistas e técnicos que se responsabilizem pela fundamentação e execução do projeto, constituindo uma base organizativa de caráter continuado”.
Por que restringir as inscrições a “núcleos artísticos” e o quê seriam núcleos artísticos? O que temos visto hoje, na palavra dos artistas, são núcleos que se formam para concorrer a editais:
O que eu sinto nesses editais da dança alguns são núcleos mas alguns as pessoas se juntaram,. Tá rolando muito isso assim, isso entre os núcleos, alguns se mantém mas (...)o que é normal que as pessoas são jovens, estão começando aí se juntam aí vão fazer mas esses querem um, não engata porque não é desse jeito que você vai fazer um trabalho artístico.[...] Não aprofunda, e é uma questão do fomento né por exemplo porque que o fomento tem que ser necessariamente para grupo de no mínimo 5 pessoas?

Mas a exigência é que fosse um grupo, e grupo para eles era pelo menos 5 ou 4, agora não lembro, e ai por isso, agente propôs experimentar trabalhar com outras pessoas e ai agente chamou três pessoas, e ai foi bacana,ai e depois daquilo no outro, no Permitido agente fez com mais gente também, eram cinco, ai o não passado agente fez em 4, agora agente ta fazendo de novo em grupo. Agente continuou o grupo, fazendo coisas em grupo.

[...] eu sou uma profissional nova, eu me formei faz três anos, foi interessante trabalhar com a Marta agora está sendo interessante trabalhar com a Juliana Moraes, no sentido de aprender coisas, de conhecer caminhos diferentes de criação, conhecer referências outras artísticas que essas pessoas têm me trazido. Então agora eu estou aproveitando bastante. É claro que tem essa coisa de ter que se dividir em mil trabalhos, tem o cansaço, todos são de criação, você tem que ter uma demanda criativa super grande... Mas, por outro lado, eu vou aprendendo com isso e está sendo bom mas o ideal seria fazer o meu trabalho.

Se o grupo for entendido como “um território de produção” em que há uma identidade de clima, de ambiente e entre pessoas; “um projeto artístico compartilhado; escolha por um caminho de fazer junto, pesquisando na prática, sentindo-se co-autores, uma via de acesso coletiva ao viver da arte” (CAMARGO,2008, p.58), esses formatos “para editais” não parecem muito inspiradores.
Se há os grupos de edital, há a dificuldade dos que trabalham sozinhos frente à exigência por grupos com “número mínimo de dançarinos”. Voltamos ao mesmo pronto: o que é um núcleo artístico estável em 2008? Como estariam contemplados propostas interdisciplinares?

Eu comecei a entrar em desespero em 2006 porque eu não consegui ganhar Fomento pra pesquisa eu não consegui, porque o fomento da cidade vinha aquela cláusula que tinha que ser de grupo e eu tava trabalhando solo. Mesmo que eu quisesse incluir alguém mais, por exemplo, que poderia ter um outro artista trabalhando comigo que eu consideraria uma parceria não era tinha que ser bailarino lá dentro não podia ser um videomaker ou alguém que fosse fazer criar um livro sei lá...

4.2.2 Como ser só?
Lugar comum, mas também válido aqui: parcerias ajudam a persistir, a ter energia para buscar caminhos próprios, alternativas e saídas frente a obstáculos. Talvez seja essa uma das forças dos grupos e das parcerias longas: uma reserva extra de combustível dada ou construída pelas trocas, pelos momentos em que se pode respaldar e ser respaldado. Verdade para um dupla de artistas que cria junto desde a faculdade, para um casal – que resolvia sua vida financeira com um dueto : “Lar, doce lar” , ...
A gente até voltou para a Unicamp agora para dar umas oficinas para o terceiro ano, porque a professora nossa de lá convidou e tal e a gente estava sacando e conversando sobre isso, isso de entrar no mercado, como é que se faz a faculdade e tal... Eu acho que uma coisa que ajudou muito a gente era o fato da gente estar junto e da gente já ter uma pesquisa de alguma forma, por mais imatura que ela ainda fosse, a hora que a gente estava saindo da faculdade, isso dava um “chão” para a gente...[...] e eu acho que isso que a Clara falou da coletividade, eu acho que, por mais que nós sejamos duas, eu sinto que tem uma força do que cada uma que saiu e foi se virar sozinha. Porque quando uma estava (...) que difícil a outra não vamos lá...

Agente queria chamar mais gente, queria mais tempo, um monte de coisa, mas não então vamos fazer nós dois e a gente fez o Lar Doce Lar , não sei se você viu isso, aí a gente teve o Lar doce lar e rolou né a gente ficou ali anos agora que a gente parou porque (...) cansa. Mas ele rolou e era de vendas, (...)

Nos trabalhos solos, se está sozinho na sala de ensaio, na hora de produzir, quando se é aceito ou rejeitado, na hora de vender...
Então nesse sentido se torna mais fácil [o grupo], porque a articulação é melhor. Por exemplo, o solo, que poderia ser mais fácil porque é um solo, não está sendo fácil, porque eu não tenho como manter paralelo à produção, é mais difícil pra mim sozinha, então isso também é uma descoberta que eu tenho que fazer sozinha, como produzir sozinha, isso é uma descoberta pra mim

Para alguns, depois de um tempo trabalhando-se só, chega o desejo de compartilhar, de estar junto, de ter energia renovada : “querer trazer gente”.

[...] eu até acho que pelo que eu tenho percebido assim, observando e tal a trajetória das pessoas que começam trabalhando em solo, eu acho uma boa parte das pessoas, eu comecei como solo também, as pessoas começam a... depois de um certo tempo, a querer trazer gente, a querer sabe, sabe abraçar e ...

4.3 Guetos ou classe: vamos lá, gente, vamos sair dos estúdios...
A questão do “estar junto x estar só” não se restringe aos microcosmos das escolhas artístico–estáticas–financeiras de cada profissional. São questões que perpassam a organização da classe, cujo grande desafio pode ser definido pela dicotomia do “junto x só”.
.O retrato da classe, na opinião de diversos entrevistados, com diferentes papéis, de diferentes faixas etárias: guetos & grupinhos. Não há classe: há grupos com afinidade artística brigando isoladamente, sem conseguir ouvir os quereres alheios. Para muitos – talvez todos – esse é um dos grandes problemas. Não há formação ou consciência de uma “classe política”; nas palavras de um entrevistado, “não tem uma política do que é nosso”. Por exemplo, não há energia colocada em se fazerem rodas de discussão do Fomento à Dança – principal conquista da classe – como o teatro faz para discutir o Fomento ao Teatro. Conquistou-se o prêmio e... Cadê todo mundo?
Uma constatação: a classe é frágil. E o caminho, para um artista, não é lamentar-se, mas brigar. E aí, usar a arte como ato político, como guerrilha. Mas, hoje, nas palavras de outro, “a gente é meio bundão” ....
Não! Não! Se eu estivesse lamentando estaria sendo injusto, o que eu estou, não, não imagina eu não quero lamentar não porque eu acho que o papel do artista não tem que lamentar não o artista, o artista ele é artista ele tem que sabe ele é... vai ser muito pior sem ele né?[...] muito pior sem ele então a gente não pode lamentar a gente tem eu acho que a gente tem que brigar sabe? Brigar...Assim porque a gente quer se colocar mas não lamentação não porque senão se a gente ficar nessa estória de lamentação a gente fica muito frágil pra esse outro poder aí sabe? ...A gente já é frágil né então tem que chegar e tem que brigar mesmo, tem que chegar e... lamentação não sabe não porque aí você vai se fragilizar mais ainda... aí você morre, aí você morre. ... Compromete tudo você não consegue sair do lugar, enfim eu acho que arte é o ato político, é guerrilha né a gente vai fazer o ano que vem o “Che Guevara”.

Mas eu também acho que a gente é muito bundão. Nessa estréia aí [da São Paulo Companhia de Dança], devia ir toda a classe lá, sabe? Fazer uma manifestação! É, então, é no Alfa... Uma coisa que fosse de peso, entendeu?


“Vamos lá gente, vamos sair dos estúdios...”, convoca-nos uma colega. Outra pergunta-se pelas brechas e possibilidades de diálogos: “olha, tudo bem, você pode ter o seu pensamento de dança, você pode pensar diferente de mim, vamos tentar agora encontrar uma coisa que seja maior e que possa abarcar uma necessidade como um todo?” . Ou seja, retornamos à necessidade de organizarmos as “conversas anteriores” e acertarmos um patamar de discussão.

[...] Agora tem essa coisa que é, o pessoal da dança, o pessoal do Mobilização dança reclama que são três gatos pingados que vão lá na câmara brigar pelo dinheiro da classe e é verdade. Você faz debate, eu já fiz vários de fomento à dança, aparece meia dúzia de gatos pingados. Então a classe é muito desunida, e tava .... tem muito grupinho, mas é preciso recuperar o sentido de classe que se quer lutar por alguma coisa, e não pode segregar...Porque a segregação não é boa.... não pode dizer: “eu sou mais bonito porque eu faço pesquisa sobre o tema X e o outro não é tão bonito porque ele faz pesquisa sobre o tema Y”, entende? [...] Então isso é uma coisa, essa segregação intelectual ou não sei o que, eu acho que isso só prejudica a dança [...]agora começa a estrutura e sem segregação... se é uma coisa que eu não suporto é segregação, as pessoas não se dão nem conta que estão se segregando. Nem pode, é uma arte muito ampla, é preciso ter respeito por todos os profissionais que desenvolvem essa arte seriamente.

Eu sinto uma coisa aqui em São Paulo dos guetos, ainda é muito forte. [...] não sei, às vezes assim como é difícil o meio, ah eu consegui isso, quer dizer, Não tem uma coisa de uma política que é nosso sabe? [...] Se você não está no circuito ai que dificuldade, porque essa coisa né relações, não-sei-oque... Na realidade tem um pouco tem esse lugar o conceito de a reconstituição,[...] Toda vez cooperativa manda, ah reunião sobre o fomento de teatro, roda de fomento e a gente não tem roda de fomento da dança, que é um fomento super novo né e você começa a ver os projetos, vendo a cara que está tomando, você fala :”nossa gente não não é isso”, pelo menos eu acho que eu entendo que é um Fomento. Então precisa não sei pensar né pra, as pessoas sentar e conversar sobre roda de fomento, vamos lá gente, vamos sair dos estúdios...

Eu acho que é possível a classe artística se articular, mas a primeira coisa que eu acho que é difícil, isso não é só na classe artística, é a gente deixar os nossos ... como dizer isso? Aí os nossos anseios individuais de lado, [...] , cada um pensa por um viés então ninguém consegue tipo deixar o seu viés de lado, ninguém não, mas assim é difícil os grupos deixaram esses pensamentos, assim tipo de lado e pensar numa coisa que seja maior que isso mas que possa abarcar essas, não porque aí geralmente você acaba pendendo pra um lado de pensamento de dança que acaba sendo verdade e aí...

Alguns movimentos recentes são vistos com bons olhos: novos ares, novas iniciativas de articulação, independentes do Mobilização Dança (talvez inspirados na existência do Mobilização).
Não, tem, hoje tem um pouco né, tem um pouco, surgiram coletivos da dança agora que está se reunindo lá no teatro fábrica tal toda segunda-feira, tem a cooperativa dos bailarinos que surgiu aí tal aí enfim tá muito ainda, tá muito no início a dança ainda não abraçou isso né, a importância da cooperativa da dança né? [...] Então tá se mobilizando mas tá engatinhando ainda sabe, engatinhando ainda [...] mas está mudando tá, eu acho que pro pessoal mais jovem tá quebrando com isso de quebrar com essa coisa de [...] precisa se unir mesmo e sem desavenças, sem ego e tal né, eu acho que o pessoal jovem está vindo e está começando a quebrar com isso. (...) Com esse espírito e perceber que a luta é política né, a discussão é política não é artística, não é artística ... (...) de artista pra artista, é perceber que é uma classe brigando por um possibilidade... uma classe política.
4.3.1 O mistério da classe teatral: arte coletiva?
Não sei se é porque os grupos de dança são menores, são menos gente. O teatro, num grupo de teatro são 20 pessoas, para você mobilizar uma você dá um grande... essa coisa que você levantou, do teatro em si, eu acho que é uma coisa de um, apesar que vocês tem falado que está sendo difícil o público né, mas não sei se é uma coisa que já acontece né, porque tem peça de teatro que fica o ano inteiro em cartaz que não é do (...) que é uma pessoa que tem mais subsídio, não sei eu acho que é um movimento mesmo dentro, talvez essa coletividade eu acho assim.

Isso é uma coisa que eu admiro muito na classe teatral porque a classe teatral também não tem muito dinheiro, eles não tem muito mais dinheiro que a gente assim tipo, eles são mais articulados do que a gente. São mais organizados nisso, até pelo históricos deles que é mais antigo do que o nosso. Mas assim tem as suas lamentações, mas eles estão indo atrás, vão, não pára, (...) abrindo portas, vamos abrir portas eu acho que a gente já está conseguindo fazer isso faz parte da dança como um todo, né ? Eu acho que já tá mais assim, ainda tá lento e ainda esse discurso de lamentação fica maior eu reconheço isso por mim...

Uma artista ousa uma hipótese: o bailarino teria um trabalho técnico muito individual, de se investigar o tempo todo. Seria mais próximo ao do músico do que ao do ator (com exceção da técnica do Contato Improvisação). Se fosse um esporte, seria atletismo ou natação; já o teatro, futebol, basquete ou vôlei.

Porque o bailarino tem isso né, do trabalho que é ...é muito pessoal né, você está na arte o pessoal está vendo, está olhando para você o tempo todo, é um trabalho muito interno. Eu tenho amigos músicos que às vezes reclamam disso também: que a música é um trabalho muito solitário, você pegar o seu instrumento e estudar... e aí na hora de trabalhar com outras pessoas, tem essa dificuldade também: na hora de fomentar coisas pra música também tem essa dificuldade. E a galera do teatro tem uma outra organização, muito mais no coletivo, também não sei se tem a ver com esse trabalho. É, que o contato é diferente né, o trabalho do contato não é, tem esse lugar do individual, mas tem o lugar do ... É da comunicação com o outro então eu vejo, por exemplo, as pessoas do contato mais organizadas, mais indo atrás, mais trocando...

5 Sobre pesquisa: das relações entre arte e ciência
Afinal, o que é pesquisa e o que é pesquisa em dança? O que era o ponto de partida torna-se um dos principais componentes do ponto de chegada. Ao formularmos a pergunta-guia da pesquisa – como sustentar um processo de pesquisa de linguagem em dança em São Paulo hoje? – não percebíamos a quantidade de nós que a própria pergunta já carregava em sua estrutura. As mais diversas opiniões: todo mundo faz pesquisa; a criação artística tem que ter pesquisa; pesquiso o tempo todo, no meu dia-a-dia; em cena, pesquiso.
Na primeira parte do capítulo (5.1), reunimos algumas das “definições” dadas pelos artistas para o termo “pesquisa em dança”: talvez o que os artistas queiram quando pedem “tempo e oportunidade” para pesquisar sejam processos mais longos, sem compromisso de produtos finais freqüentes; ou a possibilidade de “rotina de trabalho” que tratamos no capítulo 2. A pesquisadora da dança e professora universitária Helena Katz atribui a falta de consenso e clareza em relação ao significado do termo a uma falta de “conversas de base” pela classe para formulação de entendimentos coletivos. Consequentemente, hoje, pela multiplicidade de usos, pesquisa em dança teria se tornado “um termo vazio”.
Para Helena Katz, a redefinição e consenso acerca do termo e do papel da pesquisa para a dança trariam modificações estruturais à organização do setor e da classe, assunto que abordamos no item 5.2. Finalizamos o capítulo (item 5.3) trazendo novos elementos para a discussão: a noção de campo forjada por Bourdieu e sua discussão dos usos sociais da ciência: uma reflexão crítica a cerca das vantagens e desvantagens da aproximação entre arte e universidade.

5.1 Afinal, o que é pesquisa em dança?
Assunto polêmico, muito distante de um consenso.. Ao longo das entrevistas, deparamo-nos com as mais diversas opiniões e conceituações de pesquisa:
Em 2004, eu já tava já com, já tava com formação sólida [...]. O que manteve a minha pesquisa eu tava fazendo a pesquisa em cena então eu não precisei ficar nessa coisa da pesquisa [...] eu comecei a ter vários convites de participação em outros trabalho e, em cena, é que solucionava as questões [...] Todo mundo faz pesquisa, eu acho que tem a questão da maturidade do pesquisador, maturidade da idéia né.

Então também fomentou o grupo ter um subsídio né, que daí tinha um foco de trabalho. Até então, tinha uma coisa de pesquisar a linguagem, mas o foco de trabalho ainda não estava muito claro. [...] Então, num primeiro momento, não era objetivado: vamos montar um espetáculo ah esse espetáculo vai falar sobre isso isso e isso, mas tinha ... vamos pesquisar a linguagem do Contato e por onde a gente pode seguir. Também tem essa comunidade dança/teatro que complementava o trabalho e tal. Então quando a gente se uniu, “ah, então o que que é?, qual é o foco que a gente quer pesquisar agora?, sobre que lugar a gente vai começar a navegar?, né”. Tem isso da linguagem, que a gente começou a falar ...

Porque eu sinto [pesquisa], na verdade, no meu processo desde sempre. O que eu acredito, eu não tenho um procedimento de fazer isso: “agora eu vou pesquisar isso”. Eu já danço, eu estou aqui, já estou pensando a minha vida ela é meio movimentada por isso essas coisas e a minha dança é movimentada pelas coisas que eu vivo, então tem um caminho aí como artista que independe um pouco de subsídio, de quem quer que seja. [...] Porque também você não está pesquisando não é terapêutico, né? A gente falando de produto cênico mesmo, é pesquisa né a gente está falando de produto cênico em algum momento, pode não ser talvez aqueles seis meses seja pouco ...

Acho que você não faz nenhum trabalho de criação em nada sem pesquisa [...] ninguém faz nada sem pesquisar, depende do tipo de pesquisa mas a pesquisa existe sempre. Porque se você vai trabalhar com movimento, tem que pesquisar o movimento. A criação artística ela tem que sempre tem um pesquisa... (Iracity Cardoso)

Na minha opinião, eu acho que todo trabalho que vai, assim..., deveria..., tem que ter a pesquisa, né? Eu acho que tem milhões maneiras de pesquisar e dai tem umas que você olha e fala, é um julgamento (..) Que .. de pesquisa é essa, mas pode ser que seja a maneira que a pessoa entenda e viva.

Quiçá a compreensão do que é pesquisar, para a maior parte dos entrevistados, relacione-se ao produto final e à obrigação ou não de uma montagem nova como produto:
E era um projeto de pesquisa né, não tinha um compromisso de montagem do espetáculo.

Nenhum dos meus trabalhos deu origem a só pesquisa, eu sempre estreei coisas, então eu fiz muita coisa em pouco tempo, foi muito trabalho em pouco tempo o que é bom e o que é ruim né... é bom porque eu tô sempre produzindo é ruim porque eu danço pouco os trabalhos. A Vittae era pesquisa, mas eu coloquei como parte da pesquisa continua o espetáculo então eu comecei, eu tive um espetáculo chamava “Dois Sopros”

Acho que não banca a pesquisa, assim... Eu tô um pouco ainda triste, não sei muito bem esse ano... Por que a gente meio que parou, né, a pesquisa... De novo, né? Já teve momentos assim. De novo... aí espera... E também, essa coisa do Fomento, não é toda hora que você quer criar um espetáculo. Né? Se você trabalha com pesquisa... esse ano eu não tenho gás pra fazer um espetáculo... Não quero criar um espetáculo... “ter que ter isso”... Por isso que é bacana o edital da Petrobrás, né? Num ano você pesquisa e faz e no outro ano...

E não virou, mas o que agente fez foi ficar pesquisando e entregar para Vitae. Agente fez um vídeo, assim do que era... era bem difícil assim ... mas agente fez quase como se fosse “onde estamos hoje” , era um relatório imenso escrito e alguma coisa em vídeo, e agente entregou para Vitae, agente nuca apresentou aquilo, aquilo nunca virou um espetáculo, mas é um, mas foi um lugar que pra gente foi muito importante no caminho todo, não foi muito longo, foi 8 meses, mas que agente tinha esse espaço e não tinha essa obrigação [...] Mas agente passou um tempão trabalhando sem saber o que aconteceria com aquilo, é... o que muda é a obrigação de você ter uma data x...

E todo mundo optou por apresentar... onde tava, mesmo que achasse que não tava fechado, ou que ainda não finalizou o trabalho...Todo mundo quis apresentar... E o engraçado, engraçado não, mas depois eu fiquei vendo e pensando, é... porque tem uma hora que eu acho que pra muita gente essa troca também com quem vê e tal... é parte do processo de pesquisa

Aqui, volta-se ao “mal generalizado dos outdoors sem arquitetura”, do modismo da palavra pesquisa sem um real debate e conceituação. Segundo Helena Katz, a pesquisa em dança sofre um mal generalizado: afinal, pesquisa não é experimentação de uma boa idéia. Como não se iniciou uma conversa pública para se discutir o que é pesquisa, “tornou-se um conceito completamente vago, vazio, inespecífico. Qualquer pessoa que se tranque num estúdio e comece a experimentar qualquer idéia, tem a convicção que está fazendo pesquisa”.
Em relação à falta de clareza sobre “a pesquisa em dança”, um caminho sugerido por Katz seria “não inventar nada novo, mas sim seguir modelos já praticados por outras áreas de conhecimento” que já tenham uma cultura da pesquisa mais avançada. Ao invés disso, “ignoramos totalmente, e continuamos chamando de pesquisa a qualquer, qualquer tipo de iniciativa, de alguém que se tranque num estúdio e comece a experimentar movimentos, ou testar uma idéia e montar alguma coisa”. Para Katz, diferentemente dessas práticas de ensaios e experimentações de uma boa idéia, “pesquisa é algo que você faz quando você tem uma hipótese [sobre algo que você não conhece] e vai testar ela”, mediante o desenvolvimento de uma metodologia. Como resultado, pode-se ou não comprovar a hipótese inicial. Em resumo, “pesquisa tem uma cultura própria já desenvolvida. Você precisa ter hipótese, objetivo, justificativa, metodologia, cronologia pra fazer sua pesquisa, cronograma, você tem que saber fazer isso”.
Uma artista entrevistada fala em necessidade de “adequação de linguagem”, traduzindo essa falta de compreensão inicial a que se refere Katz:
O sinto que ainda tem que ter uma adequação das linguagens que está... porque o formato dos editais ainda compreende uma dança X tanto que às vezes pede a descrição da coreografia e você nem começou o processo [...] adequação de linguagem! E até isso pode vir até porque talvez a gente também não saiba colocar no papel ainda o que a gente está fazendo, como que se faz uma pesquisa, esse entendimento do que é pesquisa, do que que é dança, do que é produto, do que é processo..

E isso não quer dizer, ainda segundo Katz, que só universitários – ou pessoas ligadas à universidade – possam pesquisar. Para ela, a “a questão não está na separação da universidade – mercado, mas no entendimento de uma cultura de pesquisa”, que está relacionada à falta de inserção da dança na universidade. Tal compreensão só é consensual em áreas que já têm um longo tempo de produção de conhecimento na universidade .
Mas, lá nesse mundo universitário se desenvolve a cultura de pesquisa, mas o problema do artista ao qual é cassada a palavra pesquisa para definir seu trabalho, não é porque não está na universidade, é só porque ele não pratica, o que de fato se pode chamar de pesquisa. E o que ele faz é que ele tem uma boa idéia, o que ele considera uma grande idéia, e ele entra em um estúdio e começa a experimentar essa idéia. Então esse é um processo, esse é um processo de criação, que não necessariamente é um processo de pesquisa.(Helena Katz)

Para Katz, ainda há um ponto a ser esclarecido: pesquisa de linguagem não é uma prática que só se reconhece ”num determinado tipo de produto estético”. Diferentes resultados estéticos podem – ou não – passar por processos de pesquisa de linguagem. Uma característica comum a todos seria a persistência e permanência no tempo: “ela não é um objeto que chega ao mundo plenamente realizado, justamente porque é um processo que implica em abandonar idéias, reconfigurar idéias velhas, e continuar seguindo com as idéias velhas que viraram novas”.
[...] quando a gente vai falar de pesquisa, ou seja, pesquisar uma linguagem, isso implica numa formação de qual é o estado da arte daquela linguagem, quando a gente está falando de criação artística. Quando você vai fazer pesquisa mesmo, você precisa saber o que os outros já pesquisaram daquilo que te interessa. Por isso que não adianta ter uma boa idéia, porque essa boa idéia pode ter sido tida por outras pessoas 10, 20, 30 anos atrás, e já bem resolvida. Então porque você vai pesquisar algo que já está pesquisado? Não faz o menor sentido. Por isso que a ausência de uma cultura de pesquisa implica na descredibilização do que é pesquisa mesmo. E não vale tudo em pesquisa, eu não posso querer pesquisar a invenção da eletricidade, a Mary Curry já fez isso, o Thomas Edson já descobriu. Pra que que eu vou pesquisar isso? Então, porque é que na arte, qualquer um se auto-autoriza a pesquisar o que desejar, sem adotar os procedimentos necessários em toda a cultura de pesquisa em qualquer outro lugar. Por que é autoral? Sim e aí que é autoral? (Helena Katz)

Para a pesquisa de linguagem, “pouco importa se tem ou se não tem o produto, mas tem que entender que não é toda pesquisa que tem, embora possa ter produto”. Entretanto, hoje, não há onde discutir pesquisas que não são transformadas em produto e, por essa restrição do campo, “todas as pesquisas são obrigatoriamente transformadas em produto, o que pasteuriza a pesquisa como produto. Esse é o lado pérfido do mercado”.

5.2 Compreensão do que é pesquisa alterará o mercado
Se hoje existe a confusão com relação ao “o quê é pesquisa”, a dissolução dessa névoa poderá alterar consideravelmente a organização do mercado. Essa é a opinião de Katz: a pesquisa tem um tempo próprio, diferente da produção e montagem de novas obras e não resulta em novidades sempre.

Porque uma vez que você aceite a cultura de pesquisa na área da dança, você não vai mais poder exigir novidade dos criadores. Porque alguém que está num projeto de pesquisa, num processo de pesquisa, demora longos anos nesse processo de pesquisa. E nem sempre esse projeto de pesquisa tem produtos para serem mostrados a cada ano, e muito menos produtos completamente diferentes no mesmo ano.

Para Katz, a compreensão fundamental do “o quê é pesquisa” teria uma segunda conseqüência: o surgimento de programas de fomento específicos para quem faz pesquisa. Hoje, por essa incompreensão fundamental, quem faz pesquisa e quem não faz pesquisa têm que se adequar num mesmo edital, “competir pelo mesmo dinheiro” e ainda apresentar o mesmo tipo de produto. Nenhum programa é adequado para o pesquisar: afinal, não há um consenso em relação a suas particularidades – de produção, curadoria, circulação, etc.
Você está naquele contexto, no contexto da pesquisa, e passa longos anos, longos anos, e nem sempre você tem produto pra mostrar. Então, essa seria já uma segunda etapa, depois de estabelecido o que é pesquisa, que se entendesse, portanto, que quem decidiu entrar nesse campo, da pesquisa, precisa ser tratado não somente nos programas, mas precisa existir programas para essa especificidade, que resultem em editais para essa especificidade. Ou seja, sempre essa coerência: um contexto, que promove um programa, e o programa pede por um edital. A hora que pesquisa for um contexto, ela se fará traduzir em programas que estimulem a pesquisa, e esses programas abrirão os seus braços executores que são os editais, que executam os programas, independente de que programa seja executado. Então nesse momento, a hora que esse momento acontecer, isso vai mexer com todas as espécies de curadoria, de circulação, etc., etc.


Se a transformação fundamental acontecer, a pesquisa poderá ser um processo de longa duração e “ter visibilidade sem ser um produto”. Por exemplo, poderia ser criado um circuito de distribuição autenticamente alternativo, onde quem faz pesquisa poderia compartilhar o seu processo, que não necessariamente resulta em espetáculos. A implementação desses circuitos alternativos resolveria a confusão que acontece “quando pesquisa artística é mostrada pra quem quer comprar diversão”. São públicos distintos que não são encontrados no mesmo espaço.
Duas situações descritas por artistas – uma em relação à Bolsa Stagium e outra ao Rumos Dança – nas entrevistas ilustram as conseqüências dessa “confusão fundamental” de a) compreensão do que é pesquisa; e b) falta de circuitos próprios. Para uma artista, é questão de sobrevivência: não dá pra ser ingênuo e mostrar um processo quando se está em um circuito de produtos prontos – “você tá na Avenida Paulista” – ainda que a proposta do edital fosse, teoricamente, de pesquisa.
[sobre Bolsa Stagium] quando terminou, a gente tinha que fazer um ensaio aberto e eu lembro que como eu tinha pouco... na verdade eu tava pensando só na pesquisa, eu falei: “ah vou mostrar só a pesquisa “. Então, para mim, era mais um dia de ensaio. A outra pessoa que tava comigo, eu senti que ela mostrou já uma coisa mais com cara de performance, e daí nesse sentido assim: ‘ah não posso mais ser ingênua porque no fundo é tão complicado você misturar um processo

Porque quando você fala em se apresentar: a gente sabe assim, não dá pra ser inocente, tá escrito bem claro ali: você vai ter que apresentar alguma coisa. Por um lado tem essa... não adianta, você sabe que você está no Itaú, que você tá na Avenida Paulista e que é o Itaú Cultural e que é o Rumo Dança e que vai pro Brasil inteiro e pra fora do Brasil... Só que daí as pessoas quando vem aquele programa e não tem um intermediário pra falar: olha é pesquisa que vocês vão ver, vai lá e as pessoas saem falando mal porque viu uma coisa que sei lá, até eu fazia na minha casa essas coisas né... [...]Daí vem a questão do artista: você que tá se inscrevendo pro Itaú não seja manézinho ou ignorante, sabe assim não seja inocente entendeu? Qualquer coisa que você vai expor publicamente tem que tá com qualidade, independente se é processo tarararara: não é um ensaio aberto o que é pedido no Itaú. Então acho que faz parte, é um desafio pro artista inclusive isso trabalhar o processo, a forma como apresenta, o discurso que põe até tempo.

5.2.1 Necessidade de financiamento
Em nenhuma área de conhecimento, a atividade de pesquisa é auto-sustentável. Nas universidades, em geral, as pós-graduações são deficitárias e – nas privadas – sustentadas pela graduação (além de financiamentos externos à pesquisa). “Então, na nossa área não é diferente dessa: é preciso um grande investimento inicial para que a pesquisa possa florescer”, esclarece Katz.
É um novo modo de trabalhar a área: o mainstream teria sua forma: produção e circulação de espetáculos em um circuito próprio, dentro do mercado; e a pesquisa, por sua vez, espaços e verbas para financiar seus processos e seu “jeito próprio de trabalhar”.
5.2.2 Necessidade de um Circuito exibidor próprio
Quem quer comprar diversão tem todo o direito de comprar diversão, e quem quer comprar pesquisa artística tem todo o direito de comprar pesquisa artística, que não são encontrados esses dois públicos no mesmo espaço. Aquele teatro X, você não pode imaginar que aquele teatro X sirva para tudo: para apresentar o trabalho do aluno que acabou de sair, para apresentar o trabalho da companhia que tem 15 anos de percurso, pra apresentar o trabalho de quem ta fazendo pesquisa de linguagem. Assim não se forma platéia. (Helena Katz)

É o que comenta uma artista em relação à diferença de cenário em São Paulo e em Nova Iorque: lá, há territórios bem separados do tipo de arte que se exibe em cada local. Assim, diminui o estranhamento com a o tipo de obra: já se sai de casa para um local específico, que exibe um tipo de obra, informação pública de antemão.
Mas eu lembro que teve uma amiga minha há pouco tempo aqui e ela mora em Nova Iorque. [...] ela estava comentando algumas que coisas que tem lá em Nova Iorque que aqui não tem e que ela sente que causa uma confusão, que lá tem uns espaços muito específicos, você sabe você vai num lugar X você sabe que tipo de dança que você vai ver, você vai num lugar X você sabe que tipo de dança você vai ver, você vai no outro você sabe e aqui esses territórios eles são misturados ainda.... Essa identidade do que que você vai ver, então por isso acontece, era ela diagnóstico dela...e por isso ela acha que tem tanto estranhamento às vezes da platéia em relação a alguns trabalho

Por exemplo, uma alternativa seria a criação de pequenos festivas para que pesquisas fossem compartilhadas. Afinal, esclarece Katz, “de fato quem está interessado no avanço da linguagem sempre foi e parece que continua sendo uma pequena parcela da população. A maioria não está interessada nisso, e não estará. Não só na dança, em todas as áreas” .
Precisa haver uma mudança de prisma com que se olha essa questão: não ter um grande público não é um problema: é assim em todas as áreas de conhecimento, “quem vai a um congresso é um público muito pequeno. Não saiu de casa para se divertir, saiu de casa para estudar, para ir ao congresso, para apresentar um trabalho, ou seja, para estudar”. Primeiro compartilha-se com os pares, para depois, o que for “validado”, será compartilhado com a população em geral. “? “Nenhuma pesquisa de linguagem em nenhuma área vai para o teatro Municipal”.
Por isso que não pode apresentar no mesmo teatro que está apresentando o grupo Corpo ou a Vera Sala, que faz pesquisa de linguagem, mas já está consolidada. Então, o lugar onde a Vera Sala está apresentando a pesquisa de linguagem dela, é que deveria ser o lugar onde outras pesquisas de linguagem, porque a Vera Sala seria a baliza referencial, como ela já está com um nome mais consolidado na área, eu saberia lá tem a Vera Salas, lá tem a Helena Bastos, então a Laura Bruno também deve fazer pesquisa de linguagem, porque veja, está no mesmo lugar onde se apresentam essas pessoas, que eu sei que fazem pesquisas de linguagem; ela não está no Teatro Alpha, o teatro Alpha apresenta a Débora Colker, a São Paulo Companhia de Dança. Então, quando eu vejo Teatro Alpha, eu já tenho que saber que quem está lá, é mercado, o ingresso custa 80 reais, é mercado, ponto. Aqui não, e pra isso a gente tinha que ter uma política pública que deixasse claro. Apresentar a pesquisa acadêmica em congresso é moleza, mas apresentar pesquisa artística onde? Num circuito que tem tamanho mesmo de congresso, não é para 3 milhões de pessoas, é para 300, 3 mil, mas não é para 3 milhões. Não tem nenhum congresso para 3 milhões de pessoas. Porque que a pesquisa em dança vai ser para 3 milhões? (H. Katz)

5.2.3 Necessidade de referências
A atividade de pesquisa parte de um diálogo com o que já foi produzido em uma área de conhecimento: “o estado da arte”. Assim, é condição sine qua non a existência de centros de referência, que concentrem produção histórica e reflexões já realizadas.
A isso se chama o estado da arte, ou seja,o que é o estado da arte: é o que tem naquele campo de conhecimento já feito sobre esse assunto. Quem já fez isso? Como fez isso? Teve sucesso? Não teve sucesso? O que é ter sucesso? A hipótese foi comprovada? Não foi comprovada? Levou adiante? Não levou adiante? (H. Katz)

No Brasil, os centros de referência são exíguos: mesmo em universidades que têm cursos de dança, como a PUC-SP, o acervo bibliográfico é pobre, bem como a produção em língua portuguesa.
E no Brasil nós começamos a ter alguns centros de referência agora, mesmo esse aqui agora, o sentido dele é exatamente esse, para que as pessoas da sua geração possam saber o que acontecer no Brasil nos anos 70, não estou falando do século XIX, e nem de 1920, estou falando de 1970. As pessoas não tem noção do que aconteceu, dos experimentos que foram feitos. Então a idéia é que mais e mais centros apareçam. (Katz)

E não é só a opinião de Katz, professora universitária e pesquisadora. Artistas sentem falta de referências nas produções da área:
E outra coisa que eu acho que também é importante no dançar sei lá, quatro anos atrás, é essa coisa de referência na formação em dança no Brasil. O que gente precisa trocar no sentido de esses artistas que estão aqui, o quanto eles precisam trocar entre si, e o quanto eles precisam sair para trazer informação. Acho que falta referência assim, no sentido de ah (...) do meu trabalho, “nossa genial encontrei isso”, e genial mas vai no youtube vê uns vídeos de dança de tal e outra pessoa que já fez isso que você fez, o que você está fazendo já que já foi falado. No sentido de como que eu estou alimentando a minha criação, em que lugar eu estou, que referências eu estou trazendo, que corpo é esse, que mundo é esse.


5.3 Arte e ciência: como se relacionam?
Para Katz, a solução é a “institucionalização da dança” e a aproximação entre universidade e artistas. A pesquisa pode ocorrer fora da universidade, mas a universidade precisaria saber dela e refletir sobre ela. Na universidade, o que já se pensou antes estaria reunido e haveria uma possibilidade de se resgatar o “estado da arte” em determinado momento.
O que nós precisamos ter é clareza para desenvolver aqui o nosso campo de pesquisa artística, como um campo mesmo de pesquisa, e para isso nós precisamos que a dança esteja institucionalizada, porque nós precisamos ter os lugares onde pesquisar quem está fazendo pesquisa, mesmo que essa pesquisa não esteja acontecendo na universidade. Mas a universidade precisa saber dessa pesquisa, refletir sobre ela, por isso eu falei que quando a universidade se juntar com quem não está na universidade, nós vamos começar a ter essa cultura de pesquisa, porque nós vamos poder saber qual é o estado da arte. (Katz)

Mas onde deverão “arte e ciência” encontrar-se? Já em busca de um final para esse relatório, trazemos algumas reflexões de Bourdieu acerca dos “usos sócias da ciência” como insumo para o debate.
5.3.1 Pinceladas dos “usos sociais da ciência” de Bourdieu
A noção de “campo” foi forjada por Bourdieu para discutir os “usos sociais da ciência” e contrapõe-se a duas tradições de interpretações – uma internalista e outra externalista. A primeira sustenta que para compreender uma produção textual (literatura, ciência, etc) “basta referir-se ao conteúdo textual dessa produção”. Para a segunda, “basta referir-se ao contexto social”, buscando-se uma relação direta entre texto e contexto (Bourdieu, 2004, p.20).
A hipótese do autor, em contrapartida, consiste em
[...] supor que, entre esses dois pólos, muito distanciados, entre os quais se supõe, um pouco imprudentemente, que a ligação possa-se fazer, existe um universo intermediário que chamo campo literário, artístico, jurídico ou científico, isto é, o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem, ou difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas (Bourdieu, 2004, p.20).

“Campo” designará esse microcosmos relativamente autônomo, dotado de suas próprias leis. Não está descolado das imposições do macrocosmos, mas terá uma autonomia parcial, em diferentes graus; para Bourdieu, esse grau de “autonomia parcial” é um dos pontos chave acerca dos campos. Por exemplo, uma das diferenças fundamentais que há entre os diferentes campos científicos – ou disciplinas – é seu grau de autonomia. “Um dos problemas conexos será saber qual a natureza das pressões externas, a forma sob a qual elas se exercem, créditos, ordens, instruções, contratos, e sob quais formas se manifestam as resistências” (Bourdieu, 2004, p.21). Ou seja, a capacidade do campo de refratar as pressões externas, “retraduzindo as demandas externas”.
Quanto mais autônomo for o campo, maior a sua capacidade de refratar pressões externas, “transfigurá-las, a ponto de frequentemente serem irreconhecíveis” Inversamente, um campo será heterônomo quando “os problemas exteriores – principalmente políticos – aí se exprimam diretamente”. (Bourdieu, 2004, p.22).
Todo campo - o campo científico, por exemplo - é um campo de forças e um campo de lutas para conservar ou transformar esse campo de forças [...]. É a estrutura das relações objetivas entre os agentes que determina o que eles podem e não podem fazer. Ou, mais precisamente, é a posição que eles ocupam nessa estrutura [...]. Isso significa que só compreendemos, verdadeiramente, o que diz ou faz um agente engajado num campo (um economista, um escritor, um artista, etc) se estamos em condição de nos referirmos à posição que ele ocupa nesse campo, se sabemos ‘de onde ele fala’ [...](Bourdieu, 2004, p.23,24).

.O peso de cada um dos agentes no campo é determinado pela distribuição de capital científico – entendido como capital simbólico atribuído pelo conjunto de pares concorrentes no interior do campo - num dado momento. Por exemplo, no campo científico, os pesquisadores ou as pesquisas dominantes definem o que é, num dado momento, o conjunto de objetos importantes. Segue Bourdieu: “os agentes fazem os fatos científicos e até mesmo fazem, em parte, o campo científico, a partir de uma posição no campo e que contribui para definir suas possibilidades e impossibilidades” (Bourdieu, 2004, p.25). Consequentemente, as oportunidades que um agente singular tem de submeter as forças do campo a seus desejos depende de “sua posição na distribuição do capital de crédito científico”.
Esse capital, de um tipo inteiramente particular, repousa, por sua vez, sobre o reconhecimento de uma competência que, para além dos efeitos que ela produz e em parte mediante esses efeitos, proporciona autoridade e contribui para definir não somente as regras do jogo, mas também suas regularidades, as leis segundo as quais vão se distribuir os lucros nesse jogo, as leis que fazem ou não que seja importante escrever sobre tal tema, que é brilhante ou ultrapassado [...]

Ou seja, campos são os “lugares de relações de forças”, que implicam em tendências e possibilidades imanentes: nem tudo é possível num mesmo momento. Há, portanto “estruturas objetivas e lutas em torno dessas estruturas”. Os “nascidos” no campo têm o privilégio de conseguir antecipar tendências e fazer escolhas compensatórias. Os agentes sociais, por sua vez, não são partículas simplesmente “conduzidas pelas forças do campo”.
[Eles têm] maneiras de ser permanentes, duráveis, que podem levá-los a resistir, a opor-se às forças do campo. Aqueles que adquirem, longe do campo que se inscrevem, as disposições que não são aquelas que esse campo exige, arriscam-se, por exemplo, a estar sempre defasados, deslocados, mal colocados [...]. Mas eles podem também lutar com as forças do campo, resistir-lhes e, em vez de submeter suas disposições à estrutura, tentar modificar as estruturas em razão de suas disposições, para conformá-las às suas disposições (Bourdieu, 2004, p.29).


Na segunda parte do curto livro que usamos como referência, o autor faz uma análise da situação particular de uma instituição francesa, o INRA (Instituto Nacional de Pesquisas Agrônomas). Apesar de ser uma instituição pública de pesquisa científica, algumas colocações do autor podem ser-nos úteis para auxiliar-nos em nossas reflexões atuais. Um dos principais desafios do INRA é a dualidade de funções: fazem pesquisa básica e pesquisa aplicada e há – obviamente – disputas internas entre os pesquisadores de uma e outra área. A primeira, é a investigação mais estritamente especializada e sem outro objetivo imediato além do aumento de reconhecimento. Já a segunda, mais voltada para a comprovação de saberes científicos e técnicos já mais experimentados ou para a pesquisa de curto prazo. Os pesquisadores aplicados obtêm maior reconhecimento – do público e de políticos: seu trabalho é útil. Com maior reconhecimento, têm mais recursos, mas, como contrapartida, uma certa pretensão dos “utilizadores a avaliar e até mesmo orientar pesquisa”.
Mas sofre de um dos grandes paradoxos do campo científico: uma dependência na independência, já que sua autonomia depende ao fato que são financiados pelo Estado. Contra esse mal, conta-nos Bourdieu, a solução que ele encontrou para financiar seu próprio grupo de pesquisas: “só aceitar contratos para problemas já estudados ou, mais precisamente, ‘vender’ pesquisas já feitas para financiar pesquisas em curso ou em projeto, definidas segundo a própria lógica da pesquisa e não da demanda” (Bourdieu, 2004, p.57).
O confronto de visões antagonistas que opõe a autonomia dos pesquisadores ditos ‘puros’ da heteronomia dos pesquisadores ditos ‘aplicados’ impede de ver que aquilo que se confronta, na realidade, são duas formas, ambas relativamente autônomas de pesquisa, uma voltada, pelo menos na intenção, para a invenção científica e participante (bem ou mal) da lógica do campo científico e a outra voltada, antes, para a inovação, mas igualmente independente, para o melhor e para o pior, do mercado [...](Bourdieu, 2004, p.57).

Para Bourdieu, a melhor organização coletiva pela defesa da autonomia seria pela ‘desierarquização’ e capacidades de ambos lados construírem objetivos comuns: essa atividade reforçaria a capacidade de resistência, “apesar das concorrências e conflitos que os opõem, para estar em condições de resistir às intervenções mais ou menos tirânicas dos administradores científicos e de seus aliados no mundo dos pesquisadores” (Bourdieu, 2004, p.61).
E, finalmente, conclui o autor:
Uma política científica conforme o autor e (não conforme aqueles que a dirigem) não pode ser elaborada e instaurada por decreto [...] E só uma reflexão coletiva , capaz de mobilizar todas as forças da instituição [...] e todos os seus recursos [...] poderia conduzir a essa espécie de conversão coletiva [...](Bourdieu, 2004, p.64).


5.4 A dança paulista como “campo”
Tomemos a dança como um “campo”. Microcosmos em que agentes e instituições promotoras e difusoras estão envolvidos, pouco autônomo, dotado de suas próprias leis. Um campo de forças, permeado de disputas internas: assim como entre os pesquisadores do INRA; pesquisa aplicada como montagem de espetáculos e a base o que chamamos, no senso-comum, pesquisa. Os nascidos no campo – filhos de artistas, por exemplo – têm maior capital inato.
A distribuição de capital simbólico opera de forma pouco clara: não há, como no campo científico, estruturas formais de avaliação. Há pouca crítica: os críticos, esses sim, acabam tendo um alto capital simbólico. Público não é critério, pelo menos não internamente ao campo: a fronteira entre arte e mercado é clara.
Nesse caso, a melhor organização coletiva para defesa da autonomia seria a desierarquização e a capacidade de união e resistência. É o que podemos aprender de Bordieu, mas também já vem sendo sentido pelos artistas no dia-a-dia, como mostram as entrevistas. E a solução encontrada pelo sociólogo para financiar suas pesquisas talvez seja uma fonte de inspiração para aqueles que têm a autonomia como uma premissa fundamental do trabalho.
Para terminar, voltamos à questão da aproximação entre dança e universidade. Se a universidade aproximar-se da dança, os pesquisadores das salas de ensaio, contribuindo para a reflexão interna ao campo, pode sim ser um movimento de fortalecimento e união: uma maneira de se encontrarem novos caminhos de autonomia. A formação tradicional em dança dá pouca autonomia reflexiva aos bailarinos e, ainda hoje, a dança é pouco estudada historicamente, tendo uma produção intelectual baixa - a exígua bibliografia disponível sobre a área é um exemplo desse problema. A aproximação com a universidade pode, sem dúvida, agregar capital também, no sentido de produzir história da dança e crítica, aumentando seu status artístico, contribuindo para deixar de ser considerada uma arte "menor".
Entretanto, fazer o mesmo caminho, com trajetória oposta – a dança caminhar para dentro da universidade, assumindo a universidade como “centro de referência” – merece cuidado e atenção.
A segunda rota, provavelmente, tiraria capital social das mãos dos artistas e aumentaria a quantidade de capital nas mãos dos cientistas. Retomamos as idéias apresentadas anteriormente dos campos como “lugares de relações de forças”, que implicam em tendências e possibilidades imanentes, com “estruturas objetivas e lutas em torno dessas estruturas”.
Os nascidos no campo têm vantagens. No caso do campo científico, essa capacidade está estritamente ligada a “uma origem social e escolar elevada”. Perguntamo-nos se ao se fazer uma escolha por uma aproximação ainda maior do campo científico – que significa aumentar o capital social dos cientistas - artistas não estariam em desvantagem crescente. Ao mesmo tempo, o campo científico sofre das mesmas mazelas que o artístico, talvez com grau de autonomia – em algumas áreas – maior. Talvez estivéssemos trocando seis por meia dúzia, mas com menor poder de influência nas decisões.

6 “Teatro é negócio”: o Jogando no Quintal como estudo de caso.
Hoje, o Jogando no Quintal é um “espetáculo empresa”. Mas começou há sete anos, no fundo do quintal, daí o “jogando no quintal”. Acompanhamos o início do grupo e vimos seu crescimento e a “migração empresarial”. Acreditávamos ser interessante e importante temos outras referências, de fora da dança, de outros modos de fazer para alimentar as discussões e reflexões. César Gouvêa, fundador do Jogando no Quintal, foi um dos entrevistados da pesquisa.
César conta que, para ele, sempre foi um desafio e uma necessidade conseguir viver bem e se sustentar fazendo teatro. Assim como “nós”, “eles” – do teatro - também passam pelas aflições de (i) querer “utopicamente” trabalhar com o que gostam; (ii) necessidade de um “fixo para viver saudável”: afinal, só dá pra se aprofundar em pesquisa com o “aluguel garantido”:
:
Eu, pessoa física, percebi que precisava de um fixo pra viver saudável. [...] Então, eu ficava pensando assim: como ter um fixo e viver do que eu acredito? E aí, tudo o que vinha, de criação, eu pensava... Eu gosto de pesquisar; como que eu vou transformar essa pesquisa em subsídio pra que eu viva? Assim: eu quero ficar ensaiando durante um mês porque eu acredito nisso. Só que não dá, na vida normal, pra você ensaiar, e não receber. Entendeu? Principalmente em São Paulo. Se tivesse em Minas, sei lá, em Campinas eles tem muito grupo de pesquisa, ou na França, que você... Olham pra tua pesquisa, aqui em São Paulo não olham pra sua pesquisa, olham pro seu produto. Tem que... Tem que produzir, em São Paulo tem que produzir. Não importa, não importa se você estudou; você tem que transformar isso em produto e as pessoas gostarem disso [...] Então eu não podia, por exemplo, brincar de fazer pesquisinha no quintal se eu não tivesse o salário fixo dos Doutores; e hoje eu só não poderia brincar de fazer experimentações no espaço, se eu não tivesse uma garantia do Jogando no Quintal. Não dá! Se você tiver dependendo de grana pra... Não é o momento de você se aprofundar em pesquisa; tem que pensar em uma coisa que te dê sustentabilidade pra pesquisa.

Desde cedo, ele já tinha a consciência que ser ator exigiria dedicação e uma postergação da possibilidade de se sustentar: antes de tudo, teve um “paitrocínio”.

[...] quando eu tinha 13 anos eu falei pro meu pai: pai, eu quero ser ator. Só que... Eu não vou conseguir me manter fazendo teatro, você pode me sustentar me dando casa, comida, e pra sair eu consigo o meu dinheiro? E quando você tiver apertado você me avisa? Então, antes de tudo teve um paitrocíneo [...]E aí dos 13 aos 21 anos, eu podendo me dedicar ao teatro, até os 23 anos, sem ter a preocupação de trabalhar

As negociações familiares: pode fazer teatro, mas vai ter também “outra profissão. Por considerar “próxima ao teatro”, escolheu publicidade. Aos 28 anos, a situação familiar apertou: teve que participar do negócio da família, uma fábrica de chocolates : “a urgência do dinheiro vai me impedir de fazer teatro”, resumia, em uma frase, sua aflição. Sua mãe necessitava de dinheiro e o teatro, por sua vez, é um eterno investimento: inconciliáveis. “E foi nesse momento que eu entrei no Doutores da Alegria. Acho que o Doutores me mostrou que é possível fazer teatro, ele ia me dar um salário”. Não só um salário: uma mudança de concepção estética: “a arte como veículo.E perdeu todo o sentido fazer teatro convencional, ficar em cartaz”.
No Doutores da Alegria, ele e Márcio Ballas tornam-se uma dupla: para que o trabalho no hospital evoluísse, encontravam-se para treinar a técnica do palhaço e improvisação. “E aí com a minha necessidade de sobrevivência de teatro [...] e da paixão dele por palhaço e improvisação [...] bolamos uma pesquisa e surgiu o formato de jogo de futebol e transformar o meu quintal num estádio”.

[...] dentro de umas conversas, por uma necessidade de eu fazer teatro sem depender da política cultural que existe, que é uma política de mendigar... Tava absolutamente cansado de ligar pros meus amigos irem no meu espetáculo, de mendigar pro jornal fazer uma matéria, publicar meu espetáculo, que é uma obrigação dele, um veículo de comunicação... Eu queria fazer algo que não dependesse de nada disso. E o lugar que eu tinha pra isso era o quintal da minha casa. Eu queria fazer algo que não existisse em nenhum lugar, que saísse de tudo que eu não acredito. E aí com o Márcio, falando das experiências que ele teve na Europa, vendo improvisação, a gente falou: meu, se a gente quer pesquisar e eu quero fazer um teatro na minha casa, então vamos juntar as duas coisas [...]E aí a coisa que a gente queria era séria; como eu ia transformar o meu quintal, onde as pessoas iam tomar uma cerveja, num lugar de trabalho? E aí a gente pensava, criava estruturas pras pessoas irem pro quintal pra... E aí a gente chamava pessoas que a gente tinha muita afinidade, mais do que artística, ideológica, de vida, pra se sujeitar a pesquisar dentro de um quintal. Porque esse convite não se faz pra qualquer um. As pessoas vão falar, ‘você é doido, bicho’. Porque pra você convidar uma pessoa, sem nada de dinheiro, e a pessoa pesquisar, Você tem que ter o mesmo olhar sobre a vida .

Um ano e meio de ensaios antes de começar a fazer ensaios abertos. Nesse começo, uma 10 pessoas por vez. Depois 150, 400, 700... Ao mesmo tempo, movido por paixão: financeiramente não se sustentava. O tempo passou, os artistas casaram-se, tiveram filhos: não dava mais pra sustentar tanta insegurança;
“, ao mesmo tempo, durante muito tempo, uns 3, 4 anos, o Jogando foi movido por paixão, o espetáculo e a pesquisa [...] era algo que sustentava os problemas financeiros... Essa é a única explicação do Jogando existir até hoje [...]A gente não podia aumentar os ensaios, dar um outro passo porque as pessoas precisavam trabalhar. E chegou num ponto, nestes 4 anos, que as pessoas casaram, tiveram filhos; as responsabilidades aumentaram, e fazer um trabalho sem dinheiro com dedicação de ensaio se tornou praticamente inviável...

O novo passo teria que ser a uma “criação empresarial”: um sócio empresário.
. E foi nesses 6 meses que a gente se aproximou, e o Joca se tornou sócio do Jogando, porque o próximo passo que a gente tinha que dar e de uma criação empresarial pra que a gente sobrevivesse, então ele seria tão importante quanto o artista, e por isso poderia ser um sócio[ ...] : E ai ele, tendo uma visão de negócios, falou assim: dentro do sonho de vocês, vocês precisam de patrocínio, esse projeto não sobrevive sem patrocínio, para isso o espetáculo tem que ter qualidade, e para isso o treinamento tem que ser forte. O treinamento esta se diluindo pela necessidade de grana, então durante 6 meses eu vou tirar dinheiro do meu bolso, vou colocar pra vocês, pra que vocês priorizem o treinamento. E nesses 6 meses é o tempo que eu consigo patrocínio, e esse tempo de 6 meses virou 2 anos... De investimento. Nesses 2 anos o espetáculo cresceu muito, porque graças a esse apoio nos chamamos, fizemos 2 festivais internacionais, tivemos aulas, workshops, então o trabalho ficou muito forte pra que a gente pudesse conseguir um patrocínio. E a gente conseguiu um patrocínio que faz com que a gente possa cada vez mais se profissionalizar pra gente estar num cenário bacana, numa luz bacana, com um figurino bacana.

“Então é a primeira vez que a gente esta transformando dinheiro de bilheteria pro nosso bolso, graças ao patrocínio”. Hoje, César resume o Jogando no Quintal como “UM ESPETÀCULO QUE VIRA UMA EMPRESA”:”teatro é negócio”!

[...] essa coisa de você ter um espetáculo que vira uma empresa você tem uma coisa chamada planejamento estratégico, e tem uma grande sabedoria que é como saber planejar você daqui a 3 anos, mas que isso não impede de você viver o seu presente e de ser flexível com ele. Então é obrigatório você planejar aonde você quer chegar. E ter uma puta escuta de como improvisar de acordo com o que esta acontecendo, entendeu? Então isso é uma coisa muito forte, então assim planejamento sempre tem que existir, então assim, eu e o Joca e o Márcio a gente se planeja muito: “e ai? E esse ano?” “Esse ano a gente precisa chegar mais para...” a gente passou um ano na Cachaçaria... Preju... 10 mil reais por mês...[...] tinha 2100 pessoas no mês. É que era o seguinte: é como você conseguir... Bater na porta de um empresário pra conseguir emprego e você não tem dinheiro, mas você compra um terno. Então a gente precisava um mês, de mostrar um profissionalismo pro empresário, pro empresário patrocinar. Porque o patrocinador não tem muita... Você vê a gente já pensa numa escola no Butantã, na periferia... O empresário não tem o poder de imaginação... Imagina esse lugar... Não! Você tem que mostrar uma puta tenda de circo, um puta estacionamento... Imagina o meu logo lá... A gente tem que facilitar pro empresário não ter esforço em sua cabeça de falar: “eu patrocino isso!” Então foi um ano de jogar pôquer de gastar 10 mil por mês acreditando no potencial do espetáculo e acreditar num profissionalismo que não existia. Então as pessoas olhavam: “isso aqui tá bombando cara, 2000 pessoas por final de semana! Nossa! Puta produção! Bilheteria, tudo...” mas ninguém sabe que por trás disso tinha 2, 3 neguinho inclusive, inclusive não, eu, chorando mostrando um profissionalismo que internamente não existe, puta blefe, pôquer, blefe em termos de produção não de qualidade de espetáculo, mas blefe [...]Daí depois de dois anos a gente recuperou a grana dele, e a partir de agora ele esta ganhando um pró-labore uma coisa de lucro, se a gente tiver, mas muito aquém do que ele recebia enquanto empresário, mas muito aquém, 20%. Então... Ele quis mudar de vida... De 3 anos pra cá o Jogando seria impossível existir sem uma figura de um empresário.

Pra mim, pro Márcio e pro Joca, se você quer sobreviver de arte, você tem que pensar de arte como negócio. Mesmo que você monte o espetáculo e fale assim: esse espetáculo é pra 30 pessoas, eu não vou ganhar... é negócio, teatro é negócio, mas as pessoas acham que é negócio no mal sentido, é negócio no bom sentido, é negócio. Eu quero viver do que eu gosto, da minha arte, eu não quero ser dentista. Eu quero viver de teatro e bem, então eu vou fazer isso. [...] É um mundo capitalista... Gente é anos 70 artista querer ser pobre e pop, não é 70? Meu, teatro é negocio, teatro é negócio, no melhor e no bom sentido do negócio. Posse ser um espetáculo pra uma pessoa e pode ser um puta negócio, é negócio, é produto, você está lidando com público, é claro que tem gente que se vende nisso, tem gente que não se vende, e dá pra não se vender e ganhar dinheiro. É isso: dá pra não se vender e ganhar dinheiro, dá! Dá pra ser autêntico e ganhar dinheiro, dá! Dá pra ser verdadeiro e ganhar dinheiro, dá! São poucos, mas dá [...] .


Pessoalmente, quanto fôlego se tem para fazer o mesmo espetáculo, em moldes grandiosos, por tantos anos? Substituições...
Como hoje eu sinto... Eu não sei por quanto tempo eu vou conseguir fazer um espetáculo que já dura seis anos, não sei se daqui há um ano eu vou conseguir ter tanto frescor. Então por isso que eu já estou preparando outros espetáculos, pra que eu particularmente saia, mas que o Jogando exista,


7 (In)conclusões: deslocado, descompassante ou descompassado?
Artistas-híbridas, iniciamos esse percurso perguntando-nos pela possibilidade de realizarmos “trabalhos inovadores, de cunho investigativo, com consistência e excelência artísticas”: Não enxergávamos condições – materiais, emocionais, sociais – para fazê-lo (o que vem antes, o ovo ou a galinha?). Imbricadas nesses meandros de nossas “vidas duplas, triplas...”, percebíamos a relação, retro-alimentação e implicação entre processos artísticos e “não artísticos” – que, naquele momento, denominamos “burocrático e administrativo-financeiro”. Encontrávamos para pensar projetos mirabolantes que poderiam ser financiados; passávamos horas a fio discutindo e tempo nenhum dedicando-nos às práticas artísticas; aceitamos trabalhos inaceitáveis, por cachês menos aceitáveis.
Nos trinta, depois de gastos os trunfos da juventude, considerando a maternidade, como ter estrutura para fazer arte? Como ter estrutura a partir da arte? Ou “como criar estrutura” para fazê-lo, já que a inexistência de um programa de políticas públicas é óbvia. Pior: cada vez que o cerco aperta, os artistas afastam-se mais e mergulham na sua própria luta por subsistência. E por que no teatro é diferente? Qual a mágica do teatro: os cachês pioram pra todos, mas eles se mantêm na luta. Reúnem-se em Rodas do Fomento, fazem o “Arte contra a Barbárie”... E nós? Nós nos filiamos à Cooperativa Paulista de Teatro.
Dobramo-nos.
Será que ainda existe espaço para o “bicho da seda deslocado”?
Talvez sim, mas não mais aquele de Pedrosa: “como um produtor consciente de seu limite de atuação e consciente de que qualquer exercício de sua individualidade teria que ser praticado sempre no sentido de criar um espaço alternativo, descompassante”, até que esse descompasso seja capturado pelo sistema, exigindo um novo movimento dos que escolherem exercer sua individualidade.
Do “bicho da seda deslocado ao bicho da seda descompassante”, que sabe que toda expressão pretensamente artística está pronta para ser “assimilada, catalogada”. Mas, muitas vezes, descompassado – que sofre o descompasso - ao invés de descompassante – agente do descompasso.
. A boa-notícia é que a maior parte dos entrevistados é otimista.
Já a má-notícia é que, pelo cenário esboçado, o buraco é bem embaixo: mesmo “à margem”, temos sofrido as piores auguras do capitalismo das últimas décadas – contratos de trabalho instáveis, laboratório de flexibilidade, sem longo prazo e compromissos instáveis e intermitentes. Ao mesmo tempo, se pensamos nas reflexões sobre o “campo científico e campo artístico” de Bourdieu, “institucionalizarmo-nos” mais do que já estamos simplesmente pela dependência entre arte e mercado, pode ser problemático.
Quais as brechas?
Não terminamos com nenhuma fórmula mirabolante - oxalá tivéssemos; só inconclusões. Jogamos uma pedra no rio, vemos a superfície d`água mover-se; a profundidade de alcance, não sabemos.
Conversar mais (e fazer-nos ouvir).

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